Ciclo mostra exemplo do sofrimento mental levado às últimas consequências
Após dois dias de palestras e debates sobre a saúde mental e as questões relacionadas a ela, abordadas nos processos judiciais trabalhistas, foi encerrado hoje, na Escola Superior Dom Helder Câmara, em Belo Horizonte, o II Ciclo de Estudos Sobre Trabalho e Saúde Mental, promovido pela Escola Judicial do TRT-MG e pelo Núcleo de Investigação e Estudo em Psicanálise e Psiquiatria Judiciária-NIEP-J, em parceria com Escola Superior Dom Helder Câmara.
Fotos: Leonardo Andrade |
Os trabalhos do dia foram abertos com exposição da Psicóloga e Psicanalista responsável pelo Centro de Direito e Psicanálise da citada Escola Judicial e Coordenadora do referido Núcleo, Judith Euchares Ricardo de Albuquerque, sob o título "Alice no País de Brasília", a respeito do caso de um reclamante paranóico que ficou 18 anos peticionando, porque ele não queria que o processo terminasse. Segundo a expositora, o processo, que recebeu o selo "Tema Relevante", do Centro de Memória do Tribunal, foi finalizado porque o juiz interessou-se pelas questões da subjetividade humana e buscou orientações na psicanálise para a sua solução. Ainda segundo Judith Euchares, o caso mostra a importância de o juiz estar aberto para buscar conhecimento de outras áreas da ciência, para aplicação na prestação jurisdicional.Nas discussões que se sucederam, foi abordada a "querelância" de parte dos advogados e despreocupação de alguns deles com a necessidade de filtrar os pedidos dos seus clientes, sendo citado como exemplo a postulação de indenização por infecção com vírus de computador.
À tarde, o psiquiatra e psicanalista Celso Rennó Lima, analista membro da Escola Brasileira de Psicanálise, abordou os novos sintomas que chegam ao Judiciário Trabalhista. Segundo ele, com a banalização dos novos sintomas o homem pós-moderno não percebe que está entrando como número nos protocolos e perdendo, com isso, a sua subjetividade. A psicanálise, ainda de acordo com ele, alerta que o sintoma vem no lugar da falta. É a forma que cada ser humano encontra de lidar com a sua própria falta, e isso não pode ser padronizado, porque cada um é um, e os juízes estão percebendo isso, porque cada caso é diferente, e vai ter de assim ser considerado.
No debate que se seguiu, mediado pela juíza Titular da 3ª VT de Juiz de Fora, Martha Halfeld Furtado de Mendonça Schmidt, doutora em Direito pela Universidade de Paris I e membro do NIEP-J, foram relatados litígios trabalhistas cujas soluções demandaram importantes análises periciais, e causaram intensa angústia nos juízes. No primeiro, de acordo com a magistrada Daniela Torres Conceição, um motoqueiro sofreu agressão física de um colega de trabalho, e o golpe que lhe foi desferido o desestruturou, emocionalmente, por completo, a ponto de não conseguir mais ser feliz. Noutro, um bom empregado sofreu dissociação de consciência quando, por não conseguir adaptar-se a nova forma de gestão imposta pela empregadora, foi "aconselhado" por seus prepostos a pedir demissão.
Para a juíza, por mais preparado que o magistrado seja, ele sente-se despreparado quando depara com casos dessas espécies em sala de audiência.Mais um caso destacado foi do bancário ao qual eram impostas metas inatingíveis, sempre que iniciava o trabalho em uma agência do banco. Além disso, era excluído do café, no momento em que todos os demais eram chamados, e diferentemente dos demais, não era nomeado nas reuniões, ficando patente que sofria perseguição por parte dos seus superiores. Martha Halfeld também contou de uma reclamatória na qual ela reconheceu em sentença o sofrimento da trabalhadora, uma agente comunitária de saúde que, depois de elevada à condição de assessora do secretário de saúde de um pequeno município, foi escalada para combate a Dengue, adoecendo em face disso. A indenização foi negada.
Para o juiz titular da 39ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto, que atuou como debatedor, há inegável "judicialização" de questões afetivas, a seu ver, por necessidade de exposição e de reparação. Ainda segundo ele, a Justiça tem atraído coisas inéditas, como o caso de um filho de 30 anos que acionou a mãe, com quem morava, por entrar no computador dele. O magistrado entende que é preciso aprender sobre esses casos, para os quais não se tem parâmetros, mas o juiz também quer ser feliz. "Temos que ter certa resistência com metas, fórmulas prontas para os julgamentos, porque cada caso nós vamos instruir, analisar e julgar de forma particularizada".
Em tom de desabafo e nitidamente emocionada, a juíza Graça Maria Borges de Freitas, titular da Vara de Formiga, disse que o juiz não pode ser expropriado do seu trabalho. No entender da magistrada, a lógica que está por trás é que o Judiciário não deve ser pensante, ao contrário, deve decidir automaticamente. "É muito difícil para o juiz começar a perder o prazer pelo seu trabalho, e não podemos deixar que isso aconteça com a gente. Temos que esboçar uma reação que não seja individual, mas que seja sistêmica", propôs ela.
ONTEM
No dia de ontem, a ministra Maria de Assis Calsing, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), havia mostrado o quadro da doença mental no Brasil e no mundo, bem como apontado como tem caminhado a jurisprudência da Corte Superior Trabalhista em relação aos processos nos quais essa moléstia aparece como causa de pedir, e alertado para a necessidade de serem bem demonstrados os fatos nos acórdãos de segunda instância, para que os recursos de revista recebidos possam ser bem examinados.
Também no dia de ontem, os psicanalistas Judith Euchares Ricardo de Albuquerque e René Fiori, criticaram a imposição, ao trabalhador, de cobrança e controle excessivos no sistema de produção atual, e a brasileira contestou os diagnósticos da doença mental, que, para ela, estão banalizados.
O suicídio nas demandas judiciais também foi tema, ainda no primeiro dia do Ciclo, de palestras do psiquiatra forense Naray Paulino e do Psiquiatra e Psicanalista Henri Kaufmanner, que coordenou posterior debate com a participação dos juízes Antônio Gomes de Vasconcelos e Clarice Santos Castro, e do desembargador Marcelo Lamego Pertence. Nesse quadro, narrado pela perita do caso, foi mostrado o exemplo do sofrimento mental levado às últimas conseqüências, e como o juiz lidou com ele. A trabalhadora, na véspera de suicidar-se, promoveu um almoço familiar e disse que se lhe acontecesse algo, não procurassem por seu marido, pois a culpa seria do patrão. Após excelente trabalho pericial e apoio de outras ciências constatou-se que o suposto culpado era completamente inocente. O caso mostra também, segundo os debatedores, que o suicídio toca muito as pessoas e com a juíza que o julgou não foi diferente; que as questões nem sempre são como parecem ser, em se tratando de ser humano, e que é muito difícil lidar com questões subjetivas
AVALIAÇÃO
O juiz substituto Edisio Bianchi Loureiro, atualmente em Montes Claros, disse que esses estudos desse tipo são válidos, até pelos testemunhos apresentados, pois o magistrado pode deparar, a qualquer momento, com casos similares, e tem de ter sensibilidade para dar especial atenção ao sofrimento humano.
Para psicóLoga e psicanalista Judith Euchares Ricardo de Albuquerque, o ciclo de estudos foi muito positivo, tanto que os participantes saíram solicitando a realização do III Ciclo, no ano que vem, já com aval do desembargador César Machado, diretor da Escola Judicial. "A questão de terem sido discutidos casos concretos com teoria deu muito certo, além do que, nós mostramos o lado humano dos juízes, que tiveram a oportunidade de se manifestarem contra a imposição de metas pelo CNJ." Assista à reportagem da TV TRT-MG. (Walter Sales)