Juiz Geraldo Magela Melo: “O direito do trabalho precisa deixar de ser analógico para ser digital”.
A palestra do juiz Geraldo Magela Melo teve como foco central, justamente, a forma como as redes sociais impactam as relações sociais – das quais a relação de emprego ou de trabalho são, na visão do autor, uma espécie – afetando, em consequência, o próprio Direito do Trabalho. Para o autor da obra “A Reconfiguração do Direito do Trabalho a partir das redes sociais digitais”, como essas redes se tornaram a nova forma de comunicação do mundo contemporâneo, o direito e o processo do trabalho passam, necessariamente, por esse reflexo. Portanto, conclui, “precisam deixar de ser analógicos para serem digitais”. E exemplifica questionando há quantos anos ficou para trás a época da carta convite do rito sumaríssimo, que tinha de ser rubricada, assinada e carimbada, frente e verso! “Hoje a comunicação é pelas redes sociais, convites a testemunhas são enviados por WhatsApp e até audiências são realizadas por meio desses aplicativos. É a forma de comunicação do mundo digital”, entusiasma-se, advertindo que o direito regula os fatos, mas está sempre correndo atrás deles, ou seja, sempre atrasado em relação à prática, que hoje é digitalizada e acelerada.
Perigos da rede - De acordo com o palestrante, redes sociais nada mais são do que softwares ou sistemas de computador. O grande diferencial, e o que as tornam o maior fenômeno da internet, é que elas estabelecem relacionamentos entre pessoas no ciberespaço, ou espaço virtual “povoado”, como definiu. Ele alerta, no entanto, para os perigos a que se submete o cidadão ao se expor nas redes sociais, que se apoderam dos seus dados e controlam sua vida. Somos hoje três bilhões de usuários de redes sociais, sendo que só o Facebook controla mais de 2 bilhões e 200 milhões de perfis de usuários. Daí o poderio econômico das redes e o impacto que provocam nas relações sociais ao redor do mundo, hoje absolutamente interconectado. Para demonstrar o grande poder de interferência das redes em processos importantes, o autor cita os conhecidos episódios de interferência do Facebook na decisão do Brexit e na eleição de Donald Trump.
Magela chama a atenção para o fato de que as redes, como hoje se configuram, destroem a ideia de barreira física, afetando conceitos jurídicos clássicos, como os de jurisdição e competência. “Se alguém que está na Rússia fala mal do presidente do Brasil, por meio de rede que tem sede nos EUA, quem vai julgar isso?”, questiona, levantando situações vividas no cotidiano da Justiça do Trabalho, que também sofrem esses efeitos. Por exemplo, se um trabalhador foi contratado em Contagem, mas postou algo contra o empregador em Uberlândia, de quem será a competência? “Isso reconfigura totalmente as relações no mundo do trabalho e do direito”, pontua.
Caiu na rede… - Sobre os perfis nas redes sociais, o autor alerta que há uma autoexposição excessiva da pessoa que, ao postar todas as suas opiniões, conflitos, relacionamentos, etc., torna-se alvo fácil de uma série de interesses que permeiam a rede. Inclusive do controle do empregador. E há aí um complicador para a atuação do direito, já que o próprio titular do direito à intimidade se autoexpõe.
Mas, como tudo na vida tem dois lados, é fato que a rede possibilita uma dinâmica de relação social muito maior, ao interagirmos com centenas, ou até milhares de pessoas, ao redor do mundo, compartilhando opiniões e sentimentos, fatos e fotos, vídeos e preferências com quem está longe ou perto. É, sem dúvida, um novo modo de viver, segundo expõe o palestrante, dividindo a história da humanidade em períodos pré e pós redes sociais.
Esse fenômeno, por seu turno, gera um outro fenômeno, que é a hiperatividade judicial. Isto é, essa imediatidade e velocidade da comunicação nas redes, adicionada à multiplicidade de relacionamentos e ideias em debate, acabam catalisando conflitos, os quais, por sua vez, geram lides que vão parar na Justiça. Até porque, os conflitos pessoais são maximizados pela rede, já que não se trata mais de uma discussão privada entre duas pessoas, mas de uma pendenga pública, exposta à visão das redes de relacionamento de ambas as partes. Daí o assoberbamento da Justiça brasileira atual, que chega perto do inacreditável montante de 100 milhões de processos em tramitação! E, como os comentários viram processos, conta o juiz que no PJe, todos os dias, as partes querem juntar vídeos e áudios das redes sociais. “Nós, aplicadores do direito, temos de pensar no impacto de tudo isso na Justiça”, frisa.
Embora pretensamente gratuitas, o palestrante alerta que paga-se um preço ao se usar as redes sociais, já que elas se apoderam de todos os nossos dados… e faturam enormemente com isso. Por vezes não vemos, entre as letras miúdas dos termos de uso do Instagram, que, ao assinar o serviço, estamos doando a essa rede social os direitos sobre todas as fotos que publicamos.
O efeito de um dos requisitos da rede, a imediatidade, também foi tratado pelo palestrante. Hoje o acesso a toda informação é muito rápido (“Não se espera nem o Jornal Nacional”, ironiza) e as pessoas exigem também respostas imediatas. Ele observa que, em razão disso, deverá haver uma mudança paradigmática na forma de atuação dos sindicatos, já que, até publicar editais em 3 jornais diferentes para convocar uma assembleia, toda a categoria já terá discutido tudo o que interessa pelo WhatsApp e resolvido as questões de interesse. “Não dá mais para o sindicato ser analógico, fazendo assembleia na porta da fábrica. As assembleias hoje têm de ser online, no WhatsApp, resolvendo tudo de imediato”, prevê.
Voltando à parte boa da rede, ele aponta a cybercultura, que potencializa o conhecimento coletivo, já que milhões de informações são compartilhadas na internet, a qual se torna a grande biblioteca do mundo atual, onde todos contribuem para o conhecimento de todos. Quanto à famosa frase do escritor Umberto Eco de que “a internet deu voz a uma legião de imbecis”, ele contrapõe o fato de que também existe vida inteligente na rede, citando as enciclopédias, livros, discussões acadêmicas e trabalhos de arte, postos ao alcance de todos.
Escolhas dirigidas - Nesse ponto, ele entra no que considera o grande risco das redes: a ditadura dos algoritmos. Trata-se de regras de sistema lançadas pelo programador, de acordo com os dados que extrai das redes, captando as nossas características e preferências. Com isso, gera-se o algoritmo que pulula nas telas, com sugestões de produtos, notícias, vídeos, sites, etc. Segundo o palestrante, esse sistema acaba criando bolhas sociais, ou seja, direciona o internauta para os mesmos grupos de pessoas, com as mesmas afinidades de gostos ou pensamentos, de forma que esse usuário passa a não mais visualizar opiniões divergentes das suas.
No que toca ao mundo do trabalho, especificamente, ele tratou do fortalecimento do poder empregatício frente à capilaridade das redes sociais. Como o empregador se apropria das redes sociais, agora, o controle patronal sobre o empregado extrapola os limites da empresa. Antes restrito aos intramuros do estabelecimento, agora o empregador controla o empregado dentro e fora da empresa, inclusive o que ele faz nas férias, se está bebendo à noite, se frequenta sindicatos, etc. “Isso gera a cyber vigilância patronal, geralmente silenciosa, mas atenta e implacável”, destaca, alertando que, muitas vezes, o empregado se torna o algoz de si próprio ao expor voluntariamente toda a sua vida social e privada, seus gostos e preferências, sua opinião política, seu time de futebol, suas viagens, suas posses, etc., sabendo que tudo está à vista fácil do empregador. Ele alerta que isso pode acabar levando a um controle, pelo empregador, do engajamento sindical: “Hoje o empregador sabe se o empregado curte páginas de sindicados ou acompanha movimentos sindicais e pode puni-lo ou acabar não admitindo um candidato a emprego em função disso”, vaticinou.
O lado bom dessa onda é o que ele chama de empoderamento dos “infoproletários”: hoje todos têm amplo acesso à informação e se comunicam muito rápido, nesta cyberdemocracia, em que todos podem falar e postar livremente as suas opiniões. Isso, segundo expôs, pode ser uma grande vantagem para os trabalhadores, se eles se engajarem e se organizarem. Por exemplo, se um banco vai distribuir participação nos lucros aos empregados, no mesmo momento, é compartilhada a informação sobre o lucro bilionário que a instituição teve no último exercício. E com esse dado em mãos, eles não se deixam enganar.
Controle patronal x liberdade de expressão - Uma das principais questões tratadas no livro é se o empregador pode controlar as redes sociais dos empregados ou proibir o uso delas dentro da empresa. Para o autor, poderá, sim, regulamentar e limitar, mas proibir não é solução. “Penso que o caminho é tratar isso de maneira dialética e positiva, ensinar a usar, orientar sobre os parâmetros éticos das discussões no ambiente de trabalho, regras de convivência e respeito ao debate. Isso pode-se regulamentar. Mas há limites quanto ao poder do empregador de acessar os dados de navegação do empregado no computador da empresa”, ensina, acrescentando que, nos Estados Unidos, há proibição de que o empregador tenha acesso à senha dos empregados.
Outra questão tormentosa é sobre o direito de crítica do empregado em relação à empresa nas redes sociais e vice-versa. Mais uma vez usando o exemplo americano, o palestrante esclarece que, se as postagens nas redes sociais refletem um engajamento na busca de melhores condições de trabalho, as críticas são, sim, válidas e plenamente aceitáveis, pois trata-se da liberdade de expressão do trabalhador. Pode-se postar, por exemplo, um vídeo mostrando que a escola não oferece microfone ou equipamentos de trabalho ao professor. “Isso pode, é liberdade de expressão do trabalhador, na busca por melhores condições de trabalho. Como também a empresa não poderá punir o empregado que reclamar nas redes sociais da insalubridade no ambiente de trabalho ou denunciar atraso de salários”, explica o autor. O que o empregado não pode é fazer comentários desrespeitosos sobre o patrão, e vice-versa, ou ambos postarem fatos que afetem a subjetividade ou entrem na vida íntima e privada um do outro.
Ligado a isso, mais um ponto curioso abordado pelo palestrante foi o uso dos dados das redes na seleção de pessoal. “Hoje os selecionadores estão se transformando em verdadeiros investigadores, que fazem uma devassa nos perfis dos candidatos à vaga na empresa”, comenta, acrescentando que tem sérias dúvidas sobre se o empregador pode, de fato, fazer isso, como discute mais detalhadamente no livro.
Por outro lado, ao tratar da questão do cyberbullying, o palestrante pondera que o empregador tem que regular o uso das redes para manter ambiente de trabalho saudável. “Então, será que ele não tem que regular perfis fakes feitos na empresa?”- é outro questionamento que lança no ar.
Decifra-me ou te devoro - Falando sobre os conceitos do direito do trabalho afetados pelo fenômeno das redes sociais, o palestrante exemplifica com o instituto do tempo à disposição do empregador: segundo aponta, hoje estamos mais tempo à disposição, já que permanecemos conectados com o empregador através dos meios telemáticos até após o expediente, finais de semana, férias, etc., gerando o que ele chama de telessubordinação. E questiona: isso não seria também trabalho? Para Magela Melo, assumir um posicionamento diante dessa nova realidade é crucial para o Direito do Trabalho: “É preciso definir se temos jornada, se vamos controlar a jornada virtualizada, como está hoje, sobretudo pelas redes sociais, ou vamos ignorar essa realidade”, provoca.
Outro ponto crucial, segundo ponderou, é quanto aos novos limites da competência da Justiça do Trabalho, num tempo em que todos os conflitos estão se digitalizando. E lutar por esses novos territórios é preciso, senão perderemos terreno até a extinção, alertou. Ele exemplifica citando uma situação fictícia em que um funcionário posta perfil fake da empresa. Nesse caso, segundo afirmou, quem teria competência para dar a ordem para a rede social retirar o perfil do ar é a Justiça do Trabalho, e não a Justiça comum. “Isto porque, tudo o que tiver origem na relação de trabalho, a competência é da JT, mesmo se envolver as redes sociais”, enfatizou, acrescentando que o marco civil da internet diz apenas que “o juiz dará a ordem”, mas não especifica de que esfera deve ser esse juiz. Então, conclamou, “precisamos reclamar a nossa competência, até porque, quem declina competência pede pra ser extinto”, encerra, parafraseando frase célebre do professor Antônio Álvares da Silva.
Por fim, lembrando o caráter paradoxal das redes sociais, o palestrante afirma que elas podem ter, a um só tempo, uma dimensão socialmente libertadora e uma dimensão penalizadora do indivíduo. Num tempo em que deixamos cada vez mais de prestar atenção nas relações afetivas reais para nos voltar para as relações virtuais, ele alerta sobre a necessidade do eterno bom senso aristotélico para se buscar um meio termo que dose essas relações. Ao fim de tudo, conclui: “Não pode o direito continuar a ser analógico enquanto a sociedade é digital”.