Leonardo Sakamoto: Combate ao trabalho escravo garante direitos a trabalhadores em geral e dignidade ao país.
Diretor da Repórter Brasil e conselheiro no Fundo da ONU contra Escravidão, o jornalista Leonardo Sakamoto se propôs a fazer uma avaliação geral da situação do combate ao trabalho escravo no País. Combate esse que ele define como “ponta de lança da garantia dos direitos dos trabalhadores em geral”, o que ainda mais justifica todo o esforço empreendido na batalha.
Segundo explicou o palestrante, o combate ao trabalho escravo é parte de uma estrutura maior, que envolve a Justiça do Trabalho, o Ministério do Trabalho, o MPT, fiscais, auditores, servidores, etc. Mas para que esse combate seja eficiente é preciso um sistema em que a sociedade civil seja ouvida: “É preciso um Estado que não seja refém do poder econômico e que seja capaz de garantir qualidade de vida aos seus cidadãos. É preciso uma sociedade livre, um sistema sindical que funcione, de fato, na defesa da sociedade e, sobretudo, que não haja perseguição aos que defendem direitos humanos”.
Tripé do trabalho escravo - Para Sakamoto, o Estado deve agir no intuito de solapar os diferentes pés que sustentam esse crime. E é esse chamado “tripé do trabalho escravo” que ele se põe a dissecar no decorrer da palestra.
“O combate ao trabalho escravo não é civilizatório apenas para o processo de retirar trabalhadores de situações aviltantes, degradantes, de garantir a eles a liberdade ou garantir-lhes um punhado de certeza a respeito de quantas horas ele terá que trabalhar ou das condições a que ele estará exposto”, ensina. Ao combater o trabalho escravo, completa, a sociedade está lutando para garantir o funcionamento de todas as instituições do Estado, a liberdade à sociedade civil, o funcionamento de sindicatos e para assegurar que trabalhadores tenham qualidade de vida e dignidade. Está atuando também no combate à pobreza, que, segundo ele, é um dos tripés que sustentam o trabalho escravo.
Assim, de acordo com o jornalista, a mesmo tempo em que se garantem aos trabalhadores oportunidades para que possam desenvolver ao máximo as suas vidas e alcançar seus projetos e sonhos, combate-se uma estrutura frágil do Estado, fazendo com que ele atue no combate à impunidade, a segunda ponta do tripé que mantém o trabalho escravo.
Consequentemente, ao se atuar no equilíbrio da balança entre compradores e vendedores da força de trabalho, podando e obstruindo a ganância, a busca pelo lucro fácil ao sacrifício de direitos mínimos que garantem a dignidade, tudo em nome da malfadada “competitividade”, solapa-se o terceiro suporte do tripé que sustenta esse crime: a ganância, a busca pelo lucro fácil.
Perseguição aos combatentes - “Quando se combate o trabalho escravo, estamos construindo, portanto, um país melhor. Com instituições melhores, com liberdade que não está apenas na possibilidade de o trabalhador deixar ou não o seu local de trabalho, mas na própria liberdade de reivindicar a liberdade, o que tem sido sistematicamente negado nos últimos tempos neste país”, expressa. Tão negado que, segundo relatou, ele próprio tem sido processado, civil e penalmente, apenas por divulgar ações de resgate de trabalhadores análogos à escravidão. “É sempre a mesma mordaça: não se pode falar em trabalho escravo”, desabafa, acrescentando que, se isso tem sido feito nos grandes centros, por grandes empresas nacionais e multinacionais, o que não acontecerá nos longínquos rincões esquecidos do país?
“Eu hoje sou perseguido simplesmente por falar de trabalho escravo, por falar de liberdade, conceito que nunca foi, de fato, colocado em prática no Brasil”, denuncia. Para o palestrante, quando surgiu, muito tardiamente, a Lei Áurea no Brasil, não houve, de fato uma abolição, mas apenas uma mudança da metodologia da exploração da mão obra negra escrava. Se tivesse havido uma abolição real, argumenta, teria havido uma compensação clara a todas as vítimas de trabalho escravo e a seus descendentes. Compensação essa que até hoje não veio, acrescentou.
Preconceito contra cotas -Nesse ponto, Sakamoto relata que falar em sistema de cotas na USP era como “conclamar o demônio em meio à missa”. E a meritocracia? Perguntavam. “Meritocracia é o escudo atrás do qual a gente se esconde dos nossos pecados. Essa é a verdade. O estado brasileiro não deveria tratar os diferentes de forma igual, mas de acordo com as suas necessidades”. Ele relata que, ainda hoje, alguns policiais agem como capitães do mato, perseguindo e matando jovens negros e pobres.
Assim, de acordo com o palestrante, o combate ao trabalho escravo seria a melhor forma de fazer com que o país adentrasse com dignidade o século XXI. Afinal, somos conhecidos pelas Nações Unidas como exemplo de combate a essa prática. Ele informou que desde 1995 resgatamos mais de 50 mil pessoas. Isto porque, como frisou, muita gente entregou seu sangue e suor no combate a essa prática nas décadas anteriores.
Só cadeia não basta - Entretanto, na visão do jornalista, o problema é que, apesar de o combate ao trabalho escravo ser uma ponta de lança para a garantia dos direitos aos demais trabalhadores, ele também tem sido a porta de entrada para o ataque a esses mesmos direitos. “Fiscais que tentam romper os padrões usuais de exploração no campo são assassinados”, denuncia. E aqui ele cita o caso de Unaí, onde, no dia 28 de janeiro de 2004, quatro fiscais do MTE foram assassinados. “E nem adianta discutir se depois de tantos e tantos anos, houve ou não houve justiça. Não vai haver justiça para Unaí, enquanto esse sistema de exploração contra o qual esses fiscais lutavam não deixar de existir. E não é só colocar pessoas na cadeia. Não se resolve crimes graves como o trabalho escravo apenas colocando pessoas na cadeia”, pondera e explica que isso é importante, até para evitar que elas continuem cometendo os mesmos crimes, mas não resolve, pois seria simplesmente, vingança. “E a cadeia está é cheia dos descendentes daqueles que foram semi-libertos em 13 de maio de 1888”, alfineta.
A raiz do problema - No modo de ver do palestrante, essas ideias ilusórias de justiça nos distraem das verdadeiras discussões, que precisam ser enfrentadas. Para ele, o trabalho escravo não é uma doença, é um sintoma. E não adianta tratar só o sintoma. “A fiscalização do trabalho é fundamental e exerce um papel civilizatório no Brasil. É a base do combate ao trabalho escravo. Mas ela irá só enxugar gelo se, simultaneamente, não tratarmos de curar a doença que está por trás desse sintoma, que é o nosso modelo de desenvolvimento: concentrador, excludente e autoritário”.
Para tanto, ele diz não precisar de nenhuma revolução, mas, simplesmente, seguir o que está escrito na Constituição de 1988, documento que não deixa de ser revolucionário, pois surgiu após um período de mais 20 anos em que os brasileiros viveram nas sombras da ditadura militar. E aí ele faz um parênteses para observar que, em geral, depois de experiências em que a humanidade vive nas sombras, é que se consegue superar as diferenças e construir documentos capazes de lançar luz sobre as décadas seguintes. Um bom exemplo: Três anos depois da bomba sobre Hiroshima, em 1948, as Nações Unidas proclamam a declaração universal dos direitos humanos. Assim também com a nossa Constituição, chamada de cidadã. Só que esta, como a declaração de 1948, nunca foram retiradas totalmente do papel: “É preciso que novas gerações entendam o que ali está escrito e coloque em prática. E isso é o que muitos aqui presentes tentam: colocar esses documentos em prática.”
Novas leis, mais precarização - O jornalista revela que o combate ao trabalho escravo tem sido alvejado por aqueles que querem manter tudo como sempre foi. Ela fala de projetos de lei em tramitação que tentam mudar o conceito de trabalho escravo contemporâneo, retirando da sua caracterização o trabalho em condições degradantes e a jornada exaustiva, mantendo-se apenas o trabalho forçado e a servidão por dívida. “Essa tentativa de enfraquecer o combate ao trabalho escravo, de atacar procuradores, auditores, juízes não é de hoje e já sentíamos como prenúncio de algo pior. Quando vimos a Reforma Trabalhista ser sancionada sob aplausos de parte do empresariado e da velha política, sabemos que é mais um capítulo infeliz que se vira”. E, segundo ele, ainda pode piorar já que a lei de terceirização ampla pode se tornar outra fonte de precarização da mão de obra. E ainda vem por aí uma nova lei que muda os direitos do trabalhador no campo...
Confessando certo desânimo, ele diz buscar, na força de quem está na base dessa luta, energia para continuar. Revela que só terão recursos para combater o trabalho escravo até agosto, depois acaba-se a minguada verba. O repórter fala da importância dessa luta invadir as redes sociais. Mas diz que ela só surtirá efeito se essa indignação sair da tela e chegar, de fato, à sociedade, pois todos precisam saber que o desmonte dos direitos trabalhistas em curso pode significar o fim da liberdade dos trabalhadores em condições análogas à de escravo. “É bom lembrar que a maioria dos resgatados nessa condição estavam em contratos de terceirização irregular e que, por conta da súmula 331 do TST, isso seria considerado ilegal e quem encomendou o serviço poderia ser responsabilizado. Agora, com a lei da terceirização ampla, isso se tornou legalizado”, alerta.
Que país queremos? - O resultado de toda essa convulsão política que assola o país, segundo pondera, é o esgarçamento institucional, ou seja, a sociedade acaba deixando de acreditar nas suas instituições. E isso não conduz a boa coisa. A solução? “Penso que precisamos urgentemente retornar às raízes, que esses partidos, que hoje se digladiam pelo poder, voltem a fazer o verdadeiro debate de formação que conduziu à redemocratização”. Ele pondera que é preciso fazer um debate, junto com a base da sociedade, e a pergunta é: que país nós queremos? “Queremos um país sem trabalho escravo, um país onde haja regras que sejam respeitadas, no intuito de garantir dignidade? Queremos um país com liberdade econômica, sim, mas um país com garantia de um mínimo estado de bem estar social? Ou queremos um país que privilegia ricos em detrimento aso pobres?”
De acordo com o palestrante, a sociedade assistiu bestializada a aprovação da Reforma Trabalhista, sem entender o que são aqueles mais de 100 artigos reformados. “Apenas a vaga promessa de que mais e melhores empregos virão. Mais, talvez, mas padrão Bangladesh e Camboja”, critica.
E ele termina a sua brilhante fala com uma inspiradora previsão: “Nós podemos reconstruir o país, mas isso passa por garantir que nós erradiquemos o trabalho escravo, que é uma das piores formas de violação da dignidade humana. Se conseguirmos nos mobilizar para erradicar o trabalho escravo, talvez possamos ter no final desse caminho um país no qual teremos orgulho de viver”.