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Márcio Túlio Viana: Há clima hoje para o combate ao trabalho escravo?

publicado: 10/07/2018 às 00h00 | modificado: 10/07/2018 às 00h33

Logo do NJ EspecialDesembargador aposentado do TRT-MG, o professor Márcio Túlio Viana (da UFMG e PUC Minas) tem pós-doutorado pela Universidade de Roma I La Sapienza e pela Universidade de Roma II Tor Vergata. Ele é também coordenador do programa Polos de Cidadania da UFMG.

O professor abriu sua exposição indagando sobre o “clima” que o Direito do Trabalho respira hoje. Para ele, na atual conjuntura, o inverno e o verão parecem caminhar juntos. É que, se por um lado, há um clima de igualdade e liberdade, por outro, há o autoritarismo. “Se todos nós somos ou queremos ser mais livres, inclusive para decidir o que é certo e o que é errado, abre-se também mais espaço para o arbítrio”, ponderou. Ou seja, o contexto mencionado abre espaço para o oposto da igualdade e da liberdade. Em outras palavras: “Se tudo é mais livre, se as verdades são menos certas, se posso escolher a minha liberdade, isso também me permite escolher oprimir”, avaliou. De acordo com o palestrante, é o que acontece, por exemplo, nos conflitos de rua, onde a polícia repete, muitas vezes, os tempos da ditadura.

Clima pesado da Reforma - No entender do jurista, algo semelhante acontece com a reforma trabalhista. Isso porque embora tenha passado pelo Congresso, dando a impressão de liberdade, traz uma forte carga autoritária. Mesmo porque não ouviu os trabalhadores. Ele considera importante perceber as estratégias adotadas, chamando a atenção para a fraude praticada: “A Reforma olha para a realidade, vê as distorções dela e, ao invés de tentar corrigir, joga com essas distorções, para atingir os seus fins”, pontuou. E explicitou o que considera estratégias do legislador reformista: “Sabendo que o empregado nada pode recusar, aceitando tudo que o patrão lhe diz, a lei abre novos espaços para os acordos individuais. Sabendo que as ações judiciais se multiplicam, porque pouca gente cumpre inteiramente a lei, dificulta o acesso à Justiça. Sabendo que o juiz a duras penas, às vezes, consegue a confissão do preposto, permite que o preposto seja profissionalizado. Sabendo que o sindicato está fraco, permite a livre negociação, inclusive pra baixo, atacando a fonte do Direito do Trabalho”.

E mais. De acordo com o jurista, a reforma cria ou exacerba todo um clima. Ela passa mensagens para a sociedade, ensinando que o trabalhador sempre teve direitos em excesso e que é hora de acabar com isso. E que a CLT é fascista, embora seus defensores sejam paradoxalmente comunistas. A reforma ensina também que a Justiça do Trabalho ajuda a destruir o país. Com a ideia de que todos são livres e iguais para decidir o seu destino, facilita e até induz a opressão do mais forte sobre o mais fraco. Segundo pontua o professor, todo esse discurso afeta as interpretações, os modos de ver o Direito, diminuindo ainda mais a efetividade da CLT. Nesse contexto, noticia que a OIT recentemente inseriu as denúncias sobre o que está acontecendo no Brasil entre as 24 mais importantes que recebeu.

Mídia e patrulhamento - Referindo-se agora aos “atores climáticos”, o palestrante pontuou que, editada a reforma, a grande mídia celebrou o que seria a modernização das leis do trabalho. Na verdade, invertendo o que, de fato, havia acontecido. Desde então, destaca que aquelas ideias se disseminaram cada vez mais, afetando todos os atores no mundo do trabalho, como os fiscais, que passaram a sofrer patrulhamentos, deixando-os inseguros quanto à utilidade e conveniência social da sua função. E, ao lado de tudo isso, ainda dissemina-se entre os trabalhadores o medo de perder a ação e ter de pagar as custas do processo e os honorários sucumbenciais, quando já não podem arcar com a própria sobrevivência.

Sucateamento da fiscalização - “Qual será a influência desse clima no combate ao trabalho escravo?”, indaga em mais uma reflexão, lembrando que antes mesmo da Reforma a fiscalização do trabalho já vivia um processo de sucateamento. Como exemplo, aponta que nos últimos três anos o número de fiscais, que já era insuficiente para cobrir todo o país, foi reduzido de 3400 para 2400. O palestrante chama a atenção para a falta de recursos destinados ao combate ao trabalho escravo e para a importância da fiscalização como medida preventiva. Como pondera, é o auditor-fiscal quem atua no momento da infração, punindo o infrator no local e inibindo novas condutas idênticas. Já o juiz só atua quando recebe as denúncias, e estas, mesmo sendo em grande número, são minoria ínfima dos casos de violação da lei.

E, na avaliação do professor, o quadro parece piorar. Lembrando que há alguns anos o Ministério do Trabalho edita lista suja dos que praticam trabalho escravo, noticia que há pouco tempo surgiu uma nova Portaria, que não vingou, tentando submeter essa lista ao crivo do Ministro. Mais recentemente, uma nova portaria tentou reduzir o conceito de trabalho escravo. Nesse contexto, aponta que a lógica de diminuir o número de infrações artificialmente é a mesma adotada pela reforma, em relação à Justiça do Trabalho. Como há muitas reclamações trabalhistas, já que a maioria das empresas não cumpre inteiramente a lei, dificulta-se o acesso à Justiça. Ele alertou que os mais atingidos por esse sucateamento dos órgãos trabalhistas são os mais pobres e os submetidos a trabalho análogo ao de escravo, pois são os que têm mais a perder no ambiente de menos proteção jurídica. Afinal, não têm alternativa, vivem numa dimensão diferente, onde o Direito não chega ou chega aos pedaços.

Reação e luz no fim do túnel - “Seria possível ainda haver esperança”? indaga, observando que o clima hoje, noCongresso___Trabalho_Escravo___13___Marcio_Tulio_Viana___200.jpg sentido próprio, é muito mais instável do que era antes. Já não é tão certo dizer que no inverno faz frio e no verão faz calor. Segundo o jurista, essa mesma instabilidade existe quando se trata do clima social ou político. Mas, na avaliação do professor, essa incerteza tem também seu lado positivo. “No plano social e político, o mesmo clima de instabilidade e liberdade maior potencializa os novos movimentos sociais. Muitos deles tentam até antecipar o futuro ocupando casas, terras, escolas. E é o que pode vir a acontecer, em certa medida, no plano do Direito. Enquanto alguns juízes, procuradores e advogados, simplesmente, descansam nas normas e leis, outros questionam, combatem e as interpretam de forma revolucionária e desafiadora. Assim, de certo modo, eles se aliam àqueles movimentos sociais, já que ocupam o próprio Direito”, idealiza.

 Lembrando as encruzilhadas da umbanda (para os seus praticantes, um lugar sagrado, um momento de pausa), o professor finaliza dizendo que hoje, mais que nunca, as encruzilhadas se multiplicam e com elas as próprias escolhas. “Diante dos operadores jurídicos há, basicamente, dois caminhos. Um deles pode ser até mais confortável, que é cumprir a letra da lei sem pensar no espírito do Direito e sem pesar as consequências para os mais sofridos. O outro caminho é cumprir o espírito do Direito usando as suas palavras no sentido da transformação social”.

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