NJ Especial - Leis & Letras lança livro sobre direito de sindicalização e negociação na Administração Pública
No último dia 10 de novembro, o auditório do TRT-MG deu lugar ao lançamento do livro “A Convenção n.151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização e Negociação na Administração Pública: desafios na realidade brasileira”. A obra reúne artigos de vários autores acerca da Convenção n.151 da OIT, sobre o direito de sindicalização na Administração Pública, organizados pelas professoras Clarissa Sampaio Silva e Ana Virgínia Moreira Gomes que, ao lado da Professora Luísa Cristina Pinto e Netto e da advogada Sarah Campos, proferiram palestras durante o evento, realizado no âmbito do projeto Leis & Letras, da Escola Judicial do TRT-MG.
Compuseram a mesa o Presidente do TRT-MG, Júlio Bernardo do Carmo; o Segundo Vice-Presidente, Ouvidor e Diretor da Escola Judicial, Luiz Ronan Neves Koury; a Procuradora-Chefe do MPT em Minas Gerais, Adriana Augusta de Moura Souza; a Professora e Procuradora do Trabalho Ana Cláudia Nascimento, a doutoranda em ciências políticas pela Universidade de Lisboa e integrante da comissão de direito sindical da OAB, Sarah Campos; e a coordenadora acadêmica da EJ, Juíza Maria Raquel Zagari Valentim.
Ao abrir os trabalhos, o Presidente Júlio Bernardo do Carmo lembrou que a Convenção Nº 151 da OIT versa sobre as relações de trabalho na Administração Pública, considerando, entre outros tópicos, a liberdade sindical, o direito de organização e negociação coletiva, a expansão das atividades do Estado e a necessidade de relação de trabalho harmoniosa com as organizações de trabalhadores da Administração Pública. Segundo salientou, a Convenção 151 busca, grosso modo, delimitar a esfera de aplicação de instrumentos legais, sobretudo estabelecendo diretrizes no sentido de garantir a proteção adequada contra atos de discriminação que acarretem a violação das liberdades sindicais e do direito de negociação coletiva dos trabalhadores no âmbito da administração pública. “Obviamente, sem que isso implique em prejuízo ao funcionamento eficiente da administração e dos serviços por ela prestados”, ressalvou. Por isso mesmo, ela estabelece parâmetros seguros de garantia aos representantes de organizações de trabalhadores públicos, fixando, ainda, procedimentos para as condições de trabalho adequadas, soluções de conflitos por meio de negociação independente e imparcial, e garantia dos direitos civis e políticos. “Tudo isso já revela a grande importância das palestras de hoje, que contribuirão para o engrandecimento e aperfeiçoamento profissional dos que aqui estão”, destacou, passando a palavra ao diretor da Escola Judicial.
Por seu turno, o desembargador Luiz Ronan observou que a obra tem como norte a Constituição de 1988, que traz a preocupação com a meritocracia, a preocupação de dispensar o apadrinhamento, fortalecendo a ideia de que a admissão no serviço público deve ocorrer de forma objetiva e impessoal. “Importante esse gancho, esse marco teórico propiciado pela Constituição”, completou. Outro aspecto destacado é a substituição desse formato de perfil autoritário da Administração, permitindo que o servidor, que é destinatário do ato administrativo, dele participe de uma forma negociada, dando primazia ao diálogo. “Interessante essa participação do servidor, justamente nos espaços de discricionariedade da Administração Pública. Sim, porque aí é que a condução da coisa pública pode adquirir, efetivamente, um caráter democrático”, pontuou, passando a palavra aos palestrantes.
Ana Cláudia Nascimento Gomes: É preciso haver concorrência sindical
Ao iniciar sua fala, a Doutora em Direito Público pela Universidade de Coimbra, Procuradora do Ministério Público do Trabalho/MPT e Professora Adjunta da PUC-MINAS, Ana Cláudia Nascimento Gomes observou que o direito de sindicalização do servidor público foi consagrado a partir da CF/88 e, somente a partir daí, os sindicatos “saíram da sombra”. Ou seja, eles existiam antes, mas como associações sem poderes ou atribuições sindicais e, a partir daí, adentraram o mundo da legalidade. Ainda assim, com uma qualificação jurídica de menor importância frente aos sindicatos privados, já que eles foram tolhidos da negociação coletiva durante muitos anos.
A palestrante também frisou que, não obstante a Convenção 151 seja de 1978, o Brasil só realizou a ratificação a partir de 2010 (com o decreto do legislativo) e 2013 (decreto executivo), em razão dos muitos empecilhos enfrentados para tanto. Esse contexto de amarras, no seu entender, tem muita relação com o dogma da relação jurídica estatutária, isto é, de que o servidor público está totalmente submetido a uma relação de poder, relação essa vinculada ao Direito Administrativo, que se rege pelo critério da estrita legalidade. É uma reserva legal imperativa que domina todos os campos do vínculo jurídico-administrativo. Nessa linha de pensamento, a palestrante concluiu que essa ideia da relação estatutária foi um grande obstáculo ao reconhecimento da convenção, da contratação coletiva e também foi causa de vários julgados do STF nesse sentido.
“Sempre um parto muito grande para tentar vencer barreiras!” – desabafou a palestrante, acrescentando que foi, justamente, para evoluir nessa seara que as coautoras do livro começaram a pensar em como sair dessa estaca zero, esclarecendo quais as fontes de amarras típicas do Brasil que levaram à não efetividade da Convenção 151. A primeira delas, segundo apontou, é uma razão genérica, que vale para todos os trabalhadores públicos e privados: a ausência da ratificação da Convenção 87 da OIT e a unicidade sindical.
Abrindo parêntesis, a palestrante lembrou o fato de o evento estar se realizando em dia fatídico: o último antes da vigência da reforma trabalhista. Como esclareceu, o livro foi escrito ainda em um contexto de obrigatoriedade do imposto sindical, o que foi criticado no livro. A reforma tirou o imposto sindical, mas na visão da palestrante, ficou pior do que estava. “São faces da mesma moeda. Matar a fonte de custeio é matar os únicos sindicatos que são possíveis” – advertiu a Procuradora, ponderando que, como não pode haver sindicato paralelo, a força sindical vai ser praticamente degolada, em termos de autonomia financeira.
No que tange à função pública, destacou que as coautoras apontaram ainda outras amarras à convenção 151 que se sobrepõem à unicidade sindical e pesam de forma ainda mais intensa sobre o trabalhador público em geral: o fato de não haver nenhum tipo de legislação sobre sindicalização do servidor público. Em razão disso, a CLT foi aplicada de forma analógica. Ora, ela já é arcaica, considerando que foi feita em uma época em que o Estado intervinha na relação sindical. Então, vários artigos já foram tacitamente revogados no campo da iniciativa privada. E quando se transporta isso para a seara pública, os problemas são ainda maiores, porque não temos uma definição legal de categoria profissional no âmbito do serviço público. Como ressaltou a Procuradora, não temos informação sobre a aplicação da unicidade sindical ao serviço público. Então, como exemplificou, não se sabe se é possível um sindicato de trabalhadores públicos de várias esferas de governo juntas ou um sindicato exclusivamente relacionado ao ente federado a que está relacionado. Ou, ainda, se é possível a categoria diferenciada ou um sindicato que conglobe o serviço público e o privado ao mesmo tempo. E mais: como estabelecer negociação coletiva? Quem vai falar em nome do ente federado? Como vai ser o procedimento negocial? Que conteúdos a negociação coletiva poderá abarcar? Como lembrou, são muitas as perguntas, até porque, não é só salário que se negocia, mas condição de trabalho, meio ambiente de trabalho, licença, direito disciplinar, dentre outros.
Assim, a palestrante ponderou que nosso contexto do direito negocial no serviço público ainda está totalmente cinzento, pois temos a Convenção 151 e nada mais. Por isso, precisamos evoluir e pensar de forma específica a negociação coletiva, para que ela possa avançar. Esse quadro a levou à conclusão de que se isso não for bem resolvido de forma legislativa, a negociação não vai avançar, porque não se terá segurança jurídica para negociar. Como ressaltou, não se tem definida a condição sine qua non: qual categoria se representa, o que se vai defender, quais categorias são abrangidas.
Diante dessas questões em aberto, a palestrante finalizou ressaltando que as coautoras sugerem algumas soluções e fazem coro para que o Brasil eventualmente ratifique a Convenção 87 da OIT e, assim, possamos ter realmente uma concorrência sindical, a fim de termos sindicatos com legitimidade de representação, já que temos hoje sindicatos que não representam de forma legítima a sua categoria, mas infelizmente tem reconhecido o direito de representá-la.
Clarissa Sampaio Silva: A Administração Pública precisa se abrir ao diálogo com servidores
A segunda a falar foi a Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa, Advogada da União e Professora da Universidade de Fortaleza Clarissa Sampaio Silva. Ela lembrou que a obra apresenta uma visão multifacetária sobre o tema proposto, já que dela participaram integrantes da OIT, da Academia, do Poder Judiciário, do Ministério Público, da AGU, da Advocacia Sindical. E citou as palavras da ministra Kátia Arruda, que prefaciou o livro, para quem o conteúdo da obra, com seus vários autores, “converge na compreensão de não mais ser possível isolar a função pública brasileira e seus agentes do diálogo necessariamente exigido na construção de uma cultura democrática que é encorajada pela negociação coletiva”.
Como observou a palestrante, com a entrada em vigor da Convenção 151, que foi ratificada pelo Brasil em 2010 e promulgada em 2013, passamos a ter no cenário nacional uma norma com status de supralegalidade (pelo menos de acordo com o entendimento predominante no STF) que assegura o direito à negociação coletiva no âmbito da administração pública. “Trata-se de uma questão inovadora para as relações entre a Administração pública e seus servidores” – ressaltou a Professora, esclarecendo que, em um primeiro momento pode parecer uma ruptura com a concessão clássica do vínculo funcional, marcada pela unilateralidade da fixação do vínculo e de direitos. Entendimento esse expresso na ADIN 492, que afastou dos servidores públicos os acordos e as convenções coletivas previstos na Constituição (7°, XXVI) e na CLT, conforme lembrou.
Prosseguindo, ela ressaltou ser necessário fazer a distinção entre a negociação coletiva fundada na Convenção 151 e acordos e negociações fundados na Constituição e na CLT, pois em se tratando de matérias que estão submetidas à reserva legal, como fixação de remuneração, não se pode dispensar o instrumento legislativo. Importante também diferenciar as convenções a serem firmadas em conformidade com a Convenção 151 daqueles acordos que foram feitos nas mesas de negociação. E, como informou a palestrante, pelo menos no âmbito da administração federal, entre 2002 e 2013, foram firmados 105 acordos, por meio de uma atuação administrativa informal entre a bancada sindical e Ministério do Planejamento, sem nenhum caráter vinculante. Como frisou, embora tenham sido firmados e a grande maioria deles tenha sido mesmo transformada em projeto de lei, fato é que, caso não fosse encaminhado, nada aconteceria.
Então, no seu artigo, a palestrante desenvolveu a importância de uma lei para regulamentar, dentre outros aspectos, as seguintes questões:
- Qual é o âmbito subjetivo da aplicação da Convenção 151 da OIT? Como pontuou, a própria Convenção prevê a possibilidade de modulação dessas garantias, considerando que há servidores que elaboram políticas públicas, detém poder de direção ou exercem funções com caráter de confidencialidade. Assim, propõe que categorias do MP ou Magistratura tenham possibilidade de apresentar seus projetos de lei (de vencimentos ou outras questões). E questiona: seria necessária a negociação coletiva ou ela se colocaria já em outro patamar?
- O que pode ser objeto de negociação? Deve ser apenas uma lei geral ou deve ser minudente em vários aspectos?
- Qual a periodicidade de realização dessas negociações? Haverá, pelo menos, uma periodicidade mínima? Como obrigar atualmente a Administração Pública a negociar?
- E quanto ao procedimento em si: como resolver as controvérsias?
- E se não for enviado Projeto de lei? Quais as consequências? E se o projeto de lei for aprovado e, momentos depois, o Presidente da República o suspende, por medida provisória?
No seu entender, se o acordado tiver caráter vinculante, fica mais complicado. A esse respeito, cita que na Espanha, o Real Decreto 5/2015, que consolidou o Estatuto Básico dos Servidores Públicos, o qual prevê duas formas de negociação: pactos e os acordos (matérias que precisam de aprovação legislativa). No caso, o governo fica vinculado a encaminhar e se ele for não for aprovado ou houver rejeição tácita é possível reabrir a negociação, se uma das partes assim postular. Já em Portugal, a Lei 35/2014 – Lei geral dos trabalhadores da Administração Pública -, prevê a existência de acordos decorrentes das negociações que obrigam o governo a adotar medidas legislativas, como encaminhamento da proposta legislativa à Assembleia em 45 dias.
Para a palestrante, a futura legislação precisa estabelecer o caráter vinculante, em alguma medida, dos acordos, em decorrência dos princípios da negociação, destacando, dentre eles, o da boa fé.
Por fim, ela salienta que a ideia chave de todo o trabalho é que não se pode mais isolar a função pública brasileira de uma postura dialogal. Ou seja, é preciso “democratizar a democracia” na função pública, com responsabilidade e consequência – frisa a palestrante, citando o professor Paulo Otero, da Universidade de Lisboa.
Luísa Cristina Pinto e Netto defende revolução no Direito Administrativo
A Procuradora do Estado de Minas Gerais e Doutora em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Lisboa e Professora Assistente da PUC-MINAS Luisa Cristina Pinto e Netto disse ver com novos olhos a condição do servidor público e, por isso, convida todos a refletir sobre a posição destes na realidade brasileira.
Contou que escreveu sobre a contratualização da função pública em 2003, muito inspirada pela ideia de que temos um Estado Democrático e Social de Direito, sobretudo, pela previsão constitucional na CR/88, que trouxe, pela primeira vez, a consagração de dois direitos de caráter fundamental: de sindicalização e de greve. Ela defende que é preciso levar a sério essa previsão constitucional e colocá-la em prática na função pública.
Assim, se dedicou muito a estudar a relação de especial sujeição, ideia que, como informou, não se aplica mais na Alemanha, onde surgiu primeiramente. Ela frisou que a dogmática do Direito Administrativo brasileiro é do século passado e essa ideia de uma administração fundada em relações desequilibradas prevalece. A CF/88 tenta mudar isso e consagra esses direitos de greve e de sindicalização. Mas somente agora é que estamos refletindo sobre isso. Porém, como observou, a realidade está batendo à nossa porta: apesar de não termos regulamentado, os acordos vêm acontecendo, à margem de qualquer procedimento.
Para a Professora, essa discussão tem que ser mais ampla. “Precisamos discutir nosso modelo de direito administrativo que pensa ainda com a ideia de unilateralidade, de poder, só de imposição”, frisa. Nesse sentido, destaca que, apesar de os direitos fundamentais ocuparem um papel central, nosso direito administrativo ainda não dialoga com os direitos fundamentais. Entende, assim, ser preciso repensar seriamente as bases teóricas do nosso direito administrativo, bem como a prática. “Nosso Direito Administrativo precisa de uma revolução!” – ressalta a palestrante, afirmando que não dá para ter uma Constituição que fala de direitos fundamentais e o Direito Administrativo ser impermeável a isso. “Não dá para ter uma Administração que precisa prestar os serviços públicos (que são fruto de muitos direitos fundamentais da população) e se fechar para seus próprios servidores públicos no que diz respeito aos direitos fundamentais”, alerta.
Lembra a palestrante que os direitos fundamentais têm uma vertente subjetiva (posição subjetiva de exigir alguma coisa do Estado), mas também vão moldar todo o direito infraconstitucional, tais como o procedimento administrativo, a licitação, a relação de função pública, etc. E alerta que estamos a Anos-Luz de reconhecer essa dimensão objetiva dos direitos fundamentais em muitas das matérias do nosso Direito Administrativo.
No que tange, de fato, a essa mudança, reforça a necessidade de incorporar os direitos fundamentais ao direito administrativo, levando a democracia também à esfera da atuação administrativa. O ponto fulcral, na sua opinião, é a ideia de procedimentalização, sendo que a negociação passa, necessariamente, por essa dimensão. “É preciso dimensionar, pensar como será isso: como o Estado vai negociar, com quem, quais serão os efeitos dessa negociação. O que temos hoje é uma administração paralela, na qual as coisas vão acontecendo, sem disciplina, o que é ruim para todos”, adverte, acrescentando que, juntando-se isso com o nosso modelo de sindicato, que muitas vezes é cooptado pelo Estado, fica ainda muito mais difícil de se chegar no exercício desses direitos fundamentais de caráter coletivo.
Prosseguindo, a Procuradora diz que há um movimento de internacionalização dos direitos fundamentais. E explica: é um movimento recíproco, que funciona em duas direções. Se antes se dizia que os Estados eram soberanos e nada influenciaria na ordem jurídica dos Estados, hoje se fala cada vez mais sobre os direitos internacionais que são cogentes para os Estados. Assim, acabou a seara doméstica em que o Estado poderia fazer o que quisesse e que ele se auto vinculava. Cada vez mais se fala em internacionalização dos direitos humanos. Independentemente da vontade dos Estados, esse direito vai se impondo. E por outro lado, o direito internacional vai sendo também influenciado pelo direito interno. Então vão se formando standards que vão sendo compartilhados. Está havendo, assim, o que os constitucionalistas chamam de diálogo constitucional ou empréstimo constitucional. O nosso Supremo, por exemplo, cita a África do Sul, que cita a da Colômbia, que cita a de Israel - não de forma cogente, mas essa argumentação vai ganhando força. E o Brasil precisa acompanhar isso! – conclama a palestrante, acrescentando que a Declaração Universal dos Direitos dos Homens nunca foi direito cogente e hoje é parâmetro de aplicação dos direitos fundamentais em qualquer Corte. Conclui, assim, que é preciso largar esse dogma da legalidade no Direito Administrativo.
Ressaltando levar muito a sério essa ressignificação que o Direito Administrativo demanda, a palestrante diz ter um pouco de receio de que as coisas no Brasil sejam feitas sem medida. Isso porque, quando se estuda a função pública, o contraponto sempre é o Direito do Trabalho. Assim, como propõe, também na função pública tem que se ouvir o servidor, tem que procedimentalizar, tem que democratizar. Mas é preciso tomar muito cuidado para não ir ao extremo oposto – alerta a palestrante, enfatizando que o servidor público não pode perder a noção de que ele é um instrumento para a construção de uma sociedade, para entregar os direitos fundamentais para todos. Assim, enfatiza a necessidade de se tomar muito cuidado para não hiperbolizar o discurso de que, se o servidor não negocia então ele é um “coitado”, sob pena de se dissociar o discurso acadêmico da realidade, já que o servidor público ainda tem uma condição muito boa diante da realidade miserável em que vivemos. Assim, apesar de ressaltar que o servidor precisa de direitos fundamentais, precisa estar inserido nessa conquista do Estado de Direito Democrático Social, a palestrante externa sua preocupação de que ele precisa entender que, diferentemente de uma empresa privada, ele não está ali para que o serviço funcione na conveniência dele, mas na conveniência da sociedade.
Ao fim, a palestrante frisou ser necessário fazermos uma construção jurídica que dê direitos aos servidores. Entretanto, ponderou, nessa disciplina legislativa que se busca para a negociação coletiva, não se pode perder de vista a responsabilidade dos sindicatos, a responsabilidade dos servidores, de todos os envolvidos nesse processo. Isso para se chegar ao entendimento de que não se está negociando algo que tenha de satisfazer quem está prestando serviço, mas que se está negociando para satisfazer os interesses e os serviços que precisam ser prestados à população. É preciso ter sempre em mente que, de fato, a Administração Pública é diferente da iniciativa privada. “Função pública com direitos, sim, mas função pública com responsabilidade!” – concluiu.
Sarah Campos: Urge regulamentar a negociação coletiva no serviço público
Por fim, a doutoranda em direito administrativo e advogada de sindicatos de servidores públicos, Sarah Campos, abriu sua palestra contando que a abordagem feita por ela no livro parte de um estudo que fez no mestrado da UFMG, orientada pelo Professor Onofre, que a instigou a pensar nesses temas que já foram pontuados aqui: mudança de paradigma de visão sobre o que é o servidor público, em centrar o servidor público também no mundo do trabalho, no mundo da incidência dos direitos fundamentais.
Mas mais do que isso, ela afirmou também ter trabalhado muito na ideia do agir administrativo. Hoje essas relações são conflituosas (antes nem sequer se admitia a possibilidade de conflitos de interesse entre o servidor e a Administração pública) mas, no Estado de Direito, o servidor, sendo um trabalhador, também tem direitos próprios. Na sua ótica, isso não significa que o interesse público deve ser descartado ou mesmo minimizado. Não! Deve haver uma ponderação entre os interesses conflitantes e, na medida do possível, entender que o servidor público também tem direito de participar da fixação de suas condições de trabalho, até mesmo para democratizar as relações jurídicas no âmbito da Administração Pública.
Segundo observou a advogada, é curioso que, apesar de a Constituição Federal ter feito essa mudança paradigmática (trazendo o direito de sindicalização e de greve) - e agora com a ratificação da Convenção 151 – a própria prática da administração do dia a dia, bem como o entendimento do Judiciário, ainda não evoluíram para incorporação dos princípios democráticos no trato do servidor com o Estado. Ela lembra que a ADIN 4892, em 1993, declarou a inconstitucionalidade do artigo 240 da Lei 8.112 que trata da negociação na função pública. Por ser um regime legal, fixado unilateralmente, estatutário, ainda muito arraigado nesses conceitos de “sujeição especial” entendeu-se que não seria possível negociar. E questiona: como o superar esse entendimento?
Para a palestrante, o problema é que não se pensou na real dimensão de possibilidade de negociação dentro do serviço público. Porque, de fato, nossa Constituição estabelece que, no regime jurídico dos servidores públicos, a fixação da remuneração deve ser feita por via legal. E existe uma competência privativa dos chefes do executivo para enviarem projeto de lei alterando regime, fixando as remunerações. Isso não impede que o conteúdo ocupacional dessa relação de trabalho seja negociado. De que forma? Primeiro, ela propôs, como o brilhante professor Florivaldo Dutra já defendeu em 1994, por meio da produção democrática das normas. E pontuou que o que mais acontece no dia a dia dos advogados dos sindicatos de servidores públicos são negociações em que se acorda determinada alteração legislativa e depois o projeto de lei é enviado.
Mas o problema, como ressaltou a palestrante, é que não há procedimento estabelecido, não há transparência, nem vinculação. Então, hoje as negociações coletivas, de fato, ocorrem, mas é uma negociação muito precária. Frisou ainda que, como citado pela palestrante Clarissa, é de conhecimento geral que foi expedida uma MP suspendendo o que foi fruto de negociação entre os servidores públicos federais. Então, a necessidade de uma lei a regulamentar a negociação coletiva na função pública viria justamente para garantir a transparência, o procedimento e a vinculação.
Em seguida, a palestrante abordou o seguinte aspecto: quando o STF declara a inconstitucionalidade da negociação coletiva, ao decidir o direito de greve dos servidores públicos, deixa claro que a regra é o corte remuneratório dos dias parados. Mas desde que a greve seja deflagrada por motivo de ato ilícito da Administração, será permitida a compensação da hora por meio de acordo. “Então, o STF aceita acordo em caso de greve, que é o meio mais drástico de se pedir algo para a Administração Pública, mas não aceita o acordo prévio à greve, esse acordo permanente, esse processo de construção democrática de produção das normas. Então essa decisão é conflitante!” – enfatiza Sarah Campos.
A seu ver, temos que avançar e desmistificar o regime jurídico administrativo também. Diante disso, sustenta, no artigo, essa necessidade de evoluir de um modelo estatutário de definição unilateral por meio dos decretos, portarias, resoluções, para o modelo estatuário de definição consensual. E defende essa possibilidade, uma vez que a norma não consegue definir todas as minúcias do dia a dia funcional e das condições de trabalho. O que ela propõe, pois, é que se substitua essa forma de agir da administração unilateral, e que ela passe a acordar com o sindicato e estabelecendo um contrato coletivo. E, apesar de reconhecer que isso depende de muita discussão, a palestrante defende que, ao invés de se expedir um decreto, se faça um contrato que, por óbvio, deve se dar por meio de um procedimento transparente e dentro das balizas legais. Isso, claro, já que esse contrato não vai poder dispor de forma diferente, nem ir além ou restringir os efeitos legais, mas poderá dar uma conformação da relação funcional mais consensual.
Diante disso, a advogada separa no artigo essas duas possibilidades: quando o direito do servidor depender de uma lei para ser implementado, a negociação coletiva vai significar essa produção democrática de normas, ao se elaborar minuta do projeto de lei que será enviado para a casa legislativa. Quando a norma permitir esse espaço de conformação pela própria administração, em lugar de adotar a regulamentação unilateral, que se adote a contratual, estabelecendo esse contrato coletivo entre a administração e sindicato.
Outro importante ponto tratado pela palestrante foi o fato de ainda não termos um procedimento estabelecido e nenhuma norma que regulamente o direito de negociação coletiva. Fazendo uma comparação, expôs que, quando avaliamos os outros países, como Portugal, por exemplo, podem ser identificados esses dois institutos. Como esclarece, lá se chama negociação coletiva esse processo de elaborar o projeto de lei e, inclusive, prevê prazo para que, depois de acordado, a Administração Pública o envie para a Casa legislativa. E prevê também a responsabilização do agente por eventual prejuízo causado. Em Portugal, depois das reformas, existem dois tipos de vínculo: nomeação (tradicional servidor estatutário) e contrato de funções públicas (em caso de médico, professor, enfermeiro públicos etc, ao invés de denominarem vínculo estatutário). E lá também a norma prevê esse instrumento de regulamentação coletiva que é por meio do contrato coletivo em funções públicas. Justamente para esses casos em que a própria norma permite essa regulamentação dos direitos e deveres.
No Brasil, frisa a palestrante, já temos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional a fim de regulamentar a negociação coletiva no serviço público: PL 710, 287, 5261 e o mais atual e que está na moda, porque em vias de ser sancionado pelo Presidente, o PL 3831/2015: ele elege a negociação coletiva como mecanismo permanente de prevenção e solução de conflitos e diz que as cláusulas da negociação que tratam de questões que prescindam de lei para sua efetivação serão encaminhadas aos órgãos ou entidades competentes para sua imediata adoção.
Ou seja, esse acordo firmado que será objeto de lei tem efeito vinculante imediato. Reza também que o chefe do executivo tem o dever de enviar esse projeto de lei para a casa legislativa, mas ao seu ver, de forma inapropriada, diz que ele tem o dever de, na medida do possível, fazer com que os parlamentares, diante do princípio da boa-fé, aprovem aquele projeto ou entendam a motivação que foi dada ao envio daquele projeto de lei. No entendimento da palestrante, contudo, a expressão “na medida do possível” relativiza o termo do acordo.
Como pontua a advogada, há esse avanço no projeto de lei, porém, não há determinação de que esse projeto de lei seja enviado, nem previsão de responsabilização no caso de não envio. Fica faltando, assim, a questão que ela considera primordial, que é a vinculação e a responsabilidade.
Nesse cenário, a palestrante coloca os seguintes questionamentos: se esse chefe do executivo não enviar o projeto de lei, ele terá descumprido os princípios da legalidade e da moralidade, que regem a Administração Pública? Ele poderia ser responsabilizado por ato de improbidade administrativa? Seria devida indenização? Esse acordo seria passível de ser reconhecido como título extrajudicial? E registra que o STJ tem um precedente em que se reconheceu um acordo firmado por sindicato dos peritos judiciais da União como título executivo extrajudicial.
Finalizando, a palestrante lamenta não haver avanço em projeto de lei de negociação coletiva, atribuindo a culpa desse fato aos próprios sindicatos. Isso porque, as centrais sindicais ainda não chegaram a um acordo sobre o que deve ser esse projeto de lei, e até discute-se se a competência deveria ser da JT. Ou seja, essa falta de consenso entre as centrais sindicais dificulta o avanço no envio desse projeto de lei. Lembra, assim, que temos todos esses desafios de negociação coletiva em tempos de crise orçamentária e da PEC 95/2016 que congela os gastos públicos pelos próximos 20 anos.
De acordo com Sarah Campos, o primeiro passo para a concretização desse direito fundamental da negociação coletiva do serviço público foi dado com a ratificação da Convenção 151 da OIT e agora vai depender muito dos próprios servidores e dos sindicatos chegarem a um consenso e fazerem com que esse projeto de lei que vier a regular a negociação coletiva traga essas vinculações e, de fato, permita que a negociação coletiva deixe de ser um ato meramente de promessa e passe a ser um ato vinculativo, com força normativa no nosso mundo jurídico.