Painel 1: Perspectivas do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: diagnóstico e desafios
O congresso foi dividido em dois grandes painéis, tendo como mediadores a Profª da Faculdade de Direito e Coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, Lívia Mendes Moreira Miraglia, e os desembargadores do TRT-MG Paula Oliveira Cantelli e José Eduardo de Resende Chaves Júnior.
Padre Ricardo: Marcas da violência no trabalho escravo contemporâneo
O Professor adjunto da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Padre Ricardo Rezende Figueira, foi o primeiro a expor suas ideias no painel Perspectivas do Trabalho Escravo Contemporâneo no Brasil: diagnóstico e desafios. Para ele, além de extremamente importante e atual, o tema em questão revela um problema da humanidade, já que temos uma experiência muito maior de escravidão que de liberdade.
Como expôs, a ideia de liberdade é recente na história. Eclodiu a partir do século XVIII, construída por interesses diversos, a partir de muitas lutas sociais. A princípio, representou apenas uma vitória dos burgueses contra a nobreza. Era tão somente uma ideia de liberdade formal, liberdade jurídica seletiva, ou seja, era destinada a beneficiar apenas os cidadãos “que tinham algo a defender”, leia-se: os brancos e os que detinham os meios de produção. Ficavam excluídos os que não eram brancos, as mulheres, os empregados e tantos outros. Contudo, a ideia se expande para atingir grupos sociais que estavam fora dela. Até que chega à senzala: no Haiti, houve um levante dos escravizados e eles viraram essa página da história por lá, ainda no século XVIII.
Mudanças legislativas - Feita essa contextualização, Rezende Figueira levantou o questionamento: mas o que é trabalho escravo, afinal? O que significa? E registrou que até o ano de 2003, o artigo 149 do Código Penal Brasileiro apenas previa uma pena para o ato de reduzir alguém a condição análoga à de escravo. Mas não definia o que era análogo, nem o que era escravo. O Padre atribuiu a essa ausência de definição o fato de praticamente não haver denúncias por parte do MP e nem julgamentos ou condenações. Mas, finalmente, em 2003, veio a mudança legislativa, deixando claro na própria lei o que caracterizaria o crime descrito. (Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto). O interessante, segundo o palestrante, é que a norma considerou trabalho análogo ao de escravo não apenas as situações em que há retenção da liberdade, mas remontou ao conceito mais tradicional da escravidão, que não está ligada necessariamente ao trabalho, nem à privação da liberdade. “O núcleo central da escravidão não é a privação de liberdade, mas, sim, a ofensa à dignidade da pessoa humana. É tratar o outro como se fosse um objeto, uma mercadoria, mesmo que não tenha nota fiscal ou recibo”, ponderou. Houve preocupação em colocar a conjunção alternativa no artigo, de forma que bastava ter um dos elementos para que o juiz pudesse condenar. Faz parte hoje da noção de trabalho escravo, pois, tanto o trabalho degradante como o trabalho exaustivo. Isso, na visão do padre, foi muito importante.
Em 2014, como frisou o palestrante, veio uma nova mudança através da PEC do Trabalho Escravo, ainda pendente de regulamentação, prevendo que quem cultiva plantas psicotrópicas ou utiliza mão de obra escrava perde a propriedade. Houve um momento em que tentaram mexer no conceito do artigo 149 do CP. O objetivo era restringir o trabalho escravo àqueles em que houvesse restrição da liberdade, deixando de abranger, assim, o trabalho degradante e o exaustivo. Em um segundo momento houve uma tentativa de distinção entre o trabalho escravo da CF e o do CP, que era o trabalho análogo ao de escravo. De forma que, ao invés de mexer no Código Penal, o conceito da CR/88 é que seria restrito. Assim, para os fins previstos na Constituição, o trabalho escravo seria apenas aquele no qual houvesse a privação de liberdade, que poderia se dar através da coerção física, da ameaça, através da geografia ou até da ausência de dinheiro para pegar um transporte.
“Mas o mecanismo principal e mais comum da escravidão de todos os tempos é a prisão da alma”, expressou-se Rezende Figueira, acrescentando que um mecanismo atual de retenção de liberdade muito comum no Ocidente é a dívida. “Isso é muito grave, principalmente entre os pobres. Nenhum pobre gostaria de ser chamado de ladrão”, arrematou.
Vergonha histórica - Depois de traçar um panorama histórico da escravização ilegal no Brasil colônia e império, e todas as leis “para inglês ver” que permearam os acordos com a Inglaterra e os caminhos da abolição, o Padre levantou o problema da escravização de estrangeiros no Brasil, no século XIX, escravização essa que foi muito denunciada na Europa. Foram suíços, espanhóis, portugueses e italianos que vieram trabalhar em fazendas de café e diziam que sua situação era pior do que a do africano. A escravização do europeu era mais barata, porque o custo era só do transporte marítimo, o qual era feito através de uma dívida. E não podia sair da unidade de produção aquele que tivesse dívida. Nesse caso, seria capturado. Acerca do tema, ele apontou um importante livro de 1852: Memórias de um colono no Brasil – (1850), de Davatz, Thomas.
Conforme observou, no caso brasileiro ocorria algo interessante: a escravização ilegal não aparecia nem no mundo jurídico nem no mundo acadêmico. A discussão e a relevância do tema surgiram na literatura, que apontou o problema. Guimarães Rosa em “Grande Sertão Veredas”, fala do homem que cobiça os outros como escravos. A questão era frequentemente tratada na literatura latino-americana e na brasileira, entre os anos de 1920 e 1950.
Assim, a escravidão não só estava presente no conjunto da sociedade brasileira, como abarcava milhares de pessoas. Ocorria no nordeste, onde a dívida passava de pai para filho (escravização de longa duração) e na Amazônia, onde, no período da borracha, milhares de brasileiros, principalmente os nordestinos, foram escravizados no seringal. Outra escravidão promovida com dinheiro público: a partir da criação da SUDAM, o governo brasileiro atraiu para a Amazônia os maiores conglomerados de capital financeiro e industrial que se transformaram em criadores de gados. Eles se valiam de centenas de milhares de pessoas através do trabalho terceirizado, por meio de empreiteiras que eram, na verdade, grupos de pistoleiras que se transformavam em pessoas jurídicas trabalhando para empresas de porte internacional. E, conforme narrou o palestrante, o que havia de comum na escravização da Amazônia era o assassinato. Não era exceção, era regra. O trabalho era obtido não só pela promessa, mas também pela ameaça de morte. E muitos trabalhadores padeceram dessa sina de morrer assassinados.
Marcas da violência - O palestrante afirmou que esse padrão de violência diminuiu um pouco nos anos 90. E por duas razões: primeiro, porque o governo parou de financiar essas empresas, atendendo a pressões de movimentos em defesa do meio ambiente; segundo, graças à constituição de grupos móveis de fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego.
Prosseguindo, ele narrou o caso de um chinês, vítima de trabalho escravo em uma pastelaria, descoberto pela Polícia Civil. Era detentor de uma dívida alta por ter entrado no Brasil e era espancado pelo patrão, por achar que ele não trabalhava de forma satisfatória. Seu estado de saúde era tão grave que foi levado para uma UTI após ser resgatado. O palestrante chamou a atenção aqui para a dificuldade da língua, já que nenhuma autoridade falava mandarim. Outro caso estarrecedor contado na palestra foi de violência física brutal contra um trabalhador. Por ter escapado de uma fazenda no Maranhão, após ser capturado pelo fazendeiro, ele foi marcado com ferro de gado no rosto, peito e costas.
Em sequência, Rezende Figueira alertou ao fato de que a violência ainda se faz muito presente em nossa sociedade, apesar de não ser no patamar do passado. E essa diminuição se deve a um conjunto de ações e medidas promovidas conjuntamente pelo Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal, Auditores Fiscais e Juízes. Conforme ressaltou, a atuação do MPT foi muito importante. Isso porque até os anos 90, os empresários achavam mais vantajoso usar mão de obra escrava do que cumprir as leis trabalhistas. Quando havia fiscalização, apenas uma parcela dos escravizados era libertada. Assim, o que se pagava pelos direitos trabalhistas era muito pouco diante da economia alcançada com o crime praticado. Mas o quadro mudou a partir da ideia do dano moral individual e coletivo, pois o pagamento de indenizações se tornou um motivo de preocupação para os empresários.
Desafios e perspectivas - Finalizando, o palestrante ponderou que as mudanças legislativas ocorridas com as reformas constituem um grande desafio, já que elas podem dificultar a aplicação da lei. A caracterização do trabalho escravo pode não ficar tão evidenciada se o trabalhador não estiver, por exemplo, acorrentado ou em situação na qual a retenção de liberdade não é tão visível. A mesma dificuldade se aplica, por exemplo, em definir o que é um trabalho exaustivo em um contexto onde trabalhar 12 horas seguidas passa a ser normal. E questiona o que significará a aplicação da lei quando o legislado puder ser adequado à conveniência patronal, através do que eles chamam de acordo entre partes que são desiguais.
Outra dificuldade levantada pelo palestrante diz respeito ao obstáculo criado ao enfrentamento do crime pela ausência de responsabilização do tomador dos serviços em um caso de terceirização. E apontou, a esse respeito, o caso dos bolivianos, que são escravizados por pequenos empreiteiros, apesar de os grandes beneficiários de seu trabalho serem grandes empresas que vendem roupas e que constam ou já constaram da chamada Lista Suja. Como ponderou, se a fiscalização não atingir essas grandes empresas, o problema não se resolve, uma vez que o pequeno empreiteiro ou o “gato” não tem condições de arcar com nenhum ônus.
Portanto, na sua visão, estamos enfrentando o risco de voltar ao século XVIII com o desfazimento do direito e com a dificuldade de ação por parte do Poder Público. E diz que nosso grande desafio é refletir sobre essa circunstância, na qual se verifica toda uma arquitetura de desmonte de todos os direitos, conquistados mediante tantos anos de luta e de vidas que se sacrificaram em greves dos séculos XVIII e XIX. Isso tudo em nome da empregabilidade, da modernização, enquanto estamos assistindo a uma volta ao passado. Mas, afinal, a luta dos que combatem o trabalho escravo não se encerra aqui: “Apesar de tantos sinais negativos, eu acho que em nosso horizonte deve estar sempre presente a esperança”, arrematou.
Para leitura de artigos do palestrante, acesse este link.
Leonardo Sakamoto: Combate ao trabalho escravo garante direitos a trabalhadores em geral e dignidade ao país.
Diretor da Repórter Brasil e conselheiro no Fundo da ONU contra Escravidão, o jornalista Leonardo Sakamoto se propôs a fazer uma avaliação geral da situação do combate ao trabalho escravo no País. Combate esse que ele define como “ponta de lança da garantia dos direitos dos trabalhadores em geral”, o que ainda mais justifica todo o esforço empreendido na batalha.
Segundo explicou o palestrante, o combate ao trabalho escravo é parte de uma estrutura maior, que envolve a Justiça do Trabalho, o Ministério do Trabalho, o MPT, fiscais, auditores, servidores, etc. Mas para que esse combate seja eficiente é preciso um sistema em que a sociedade civil seja ouvida: “É preciso um Estado que não seja refém do poder econômico e que seja capaz de garantir qualidade de vida aos seus cidadãos. É preciso uma sociedade livre, um sistema sindical que funcione, de fato, na defesa da sociedade e, sobretudo, que não haja perseguição aos que defendem direitos humanos”.
Tripé do trabalho escravo - Para Sakamoto, o Estado deve agir no intuito de solapar os diferentes pés que sustentam esse crime. E é esse chamado “tripé do trabalho escravo” que ele se põe a dissecar no decorrer da palestra.
“O combate ao trabalho escravo não é civilizatório apenas para o processo de retirar trabalhadores de situações aviltantes, degradantes, de garantir a eles a liberdade ou garantir-lhes um punhado de certeza a respeito de quantas horas ele terá que trabalhar ou das condições a que ele estará exposto”, ensina. Ao combater o trabalho escravo, completa, a sociedade está lutando para garantir o funcionamento de todas as instituições do Estado, a liberdade à sociedade civil, o funcionamento de sindicatos e para assegurar que trabalhadores tenham qualidade de vida e dignidade. Está atuando também no combate à pobreza, que, segundo ele, é um dos tripés que sustentam o trabalho escravo.
Assim, de acordo com o jornalista, ao mesmo tempo em que se garantem aos trabalhadores oportunidades para que possam desenvolver ao máximo as suas vidas e alcançar seus projetos e sonhos, combate-se uma estrutura frágil do Estado, fazendo com que ele atue no combate à impunidade, a segunda ponta do tripé que mantém o trabalho escravo.
Consequentemente, ao se atuar no equilíbrio da balança entre compradores e vendedores da força de trabalho, podando e obstruindo a ganância, a busca pelo lucro fácil ao sacrifício de direitos mínimos que garantem a dignidade, tudo em nome da malfadada “competitividade”, solapa-se o terceiro suporte do tripé que sustenta esse crime: a ganância, a busca pelo lucro fácil.
Perseguição aos combatentes - “Quando se combate o trabalho escravo, estamos construindo, portanto, um país melhor. Com instituições melhores, com liberdade que não está apenas na possibilidade de o trabalhador deixar ou não o seu local de trabalho, mas na própria liberdade de reivindicar a liberdade, o que tem sido sistematicamente negado nos últimos tempos neste país”, expressa. Tão negado que, segundo relatou, ele próprio tem sido processado, civil e penalmente, apenas por divulgar ações de resgate de trabalhadores análogos à escravidão. “É sempre a mesma mordaça: não se pode falar em trabalho escravo”, desabafa, acrescentando que, se isso tem sido feito nos grandes centros, por grandes empresas nacionais e multinacionais, o que não acontecerá nos longínquos rincões esquecidos do país?
“Eu hoje sou perseguido simplesmente por falar de trabalho escravo, por falar de liberdade, conceito que nunca foi, de fato, colocado em prática no Brasil”, denuncia. Para o palestrante, quando surgiu, muito tardiamente, a Lei Áurea no Brasil, não houve, de fato uma abolição, mas apenas uma mudança da metodologia da exploração da mão de obra negra escrava. Se tivesse havido uma abolição real, argumenta, teria havido uma compensação clara a todas as vítimas de trabalho escravo e a seus descendentes. Compensação essa que até hoje não veio, acrescentou.
Preconceito contra cotas -Nesse ponto, Sakamoto relata que falar em sistema de cotas na USP era como “conclamar o demônio em meio à missa”. E a meritocracia? Perguntavam. “Meritocracia é o escudo atrás do qual a gente se esconde dos nossos pecados. Essa é a verdade. O estado brasileiro não deveria tratar os diferentes de forma igual, mas de acordo com as suas necessidades”. Ele relata que, ainda hoje, alguns policiais agem como capitães do mato, perseguindo e matando jovens negros e pobres.
Assim, de acordo com o palestrante, o combate ao trabalho escravo seria a melhor forma de fazer com que o país adentrasse com dignidade o século XXI. Afinal, somos conhecidos pelas Nações Unidas como exemplo de combate a essa prática. Ele informou que desde 1995 resgatamos mais de 50 mil pessoas. Isto porque, como frisou, muita gente entregou seu sangue e suor no combate a essa prática nas décadas anteriores.
Só cadeia não basta - Entretanto, na visão do jornalista, o problema é que, apesar de o combate ao trabalho escravo ser uma ponta de lança para a garantia dos direitos aos demais trabalhadores, ele também tem sido a porta de entrada para o ataque a esses mesmos direitos. “Fiscais que tentam romper os padrões usuais de exploração no campo são assassinados”, denuncia. E aqui ele cita o caso de Unaí, onde, no dia 28 de janeiro de 2004, quatro fiscais do MTE foram assassinados. “E nem adianta discutir se depois de tantos e tantos anos, houve ou não houve justiça. Não vai haver justiça para Unaí, enquanto esse sistema de exploração contra o qual esses fiscais lutavam não deixar de existir. E não é só colocar pessoas na cadeia. Não se resolve crimes graves como o trabalho escravo apenas colocando pessoas na cadeia”, pondera e explica que isso é importante, até para evitar que elas continuem cometendo os mesmos crimes, mas não resolve, pois seria simplesmente, vingança. “E a cadeia está é cheia dos descendentes daqueles que foram semi-libertos em 13 de maio de 1888”, alfineta.
A raiz do problema - No modo de ver do palestrante, essas ideias ilusórias de justiça nos distraem das verdadeiras discussões, que precisam ser enfrentadas. Para ele, o trabalho escravo não é uma doença, é um sintoma. E não adianta tratar só o sintoma. “A fiscalização do trabalho é fundamental e exerce um papel civilizatório no Brasil. É a base do combate ao trabalho escravo. Mas ela irá só enxugar gelo se, simultaneamente, não tratarmos de curar a doença que está por trás desse sintoma, que é o nosso modelo de desenvolvimento: concentrador, excludente e autoritário”.
Para tanto, ele diz não precisar de nenhuma revolução, mas, simplesmente, seguir o que está escrito na Constituição de 1988, documento que não deixa de ser revolucionário, pois surgiu após um período de mais de 20 anos em que os brasileiros viveram nas sombras da ditadura militar. E aí ele faz um parêntesis para observar que, em geral, depois de experiências em que a humanidade vive nas sombras, é que se consegue superar as diferenças e construir documentos capazes de lançar luz sobre as décadas seguintes. Um bom exemplo: Três anos depois da bomba sobre Hiroxima, em 1948, as Nações Unidas proclamam a declaração universal dos direitos humanos. Assim também com a nossa Constituição, chamada de cidadã. Só que esta, como a declaração de 1948, nunca foi retirada totalmente do papel: “É preciso que novas gerações entendam o que ali está escrito e coloquem em prática. E isso é o que muitos aqui presentes tentam: colocar esses documentos em prática.”
Novas leis, mais precarização - O jornalista revela que o combate ao trabalho escravo tem sido alvejado por aqueles que querem manter tudo como sempre foi. Ele fala de projetos de lei em tramitação que tentam mudar o conceito de trabalho escravo contemporâneo, retirando da sua caracterização o trabalho em condições degradantes e a jornada exaustiva, mantendo-se apenas o trabalho forçado e a servidão por dívida. “Essa tentativa de enfraquecer o combate ao trabalho escravo, de atacar procuradores, auditores, juízes não é de hoje e já sentíamos como prenúncio de algo pior. Quando vimos a Reforma Trabalhista ser sancionada sob aplausos de parte do empresariado e da velha política, sabemos que é mais um capítulo infeliz que se vira”. E, segundo ele, ainda pode piorar já que a lei de terceirização ampla pode se tornar outra fonte de precarização da mão de obra. E ainda vem por aí uma nova lei que muda os direitos do trabalhador no campo...
Confessando um certo desânimo, ele diz buscar, na força de quem está na base dessa luta, energia para continuar. Revela que só terão recursos para combater o trabalho escravo até agosto, depois acaba-se a minguada verba. O repórter fala da importância dessa luta invadir as redes sociais. Mas diz que ela só surtirá efeito se essa indignação sair da tela e chegar, de fato, à sociedade, pois todos precisam saber que o desmonte dos direitos trabalhistas em curso pode significar o fim da liberdade dos trabalhadores em condições análogas à de escravo. “É bom lembrar que a maioria dos resgatados nessa condição estavam em contratos de terceirização irregular e que, por conta da súmula 331 do TST, isso seria considerado ilegal e quem encomendou o serviço poderia ser responsabilizado. Agora, com a lei da terceirização ampla, isso se tornou legalizado”, alerta.
Que país queremos? - O resultado de toda essa convulsão política que assola o país, segundo pondera, é o esgarçamento institucional, ou seja, a sociedade acaba deixando de acreditar nas suas instituições. E isso não conduz a boa coisa. A solução? “Penso que precisamos urgentemente retornar às raízes, que esses partidos, que hoje se digladiam pelo poder, voltem a fazer o verdadeiro debate de formação que conduziu à redemocratização”. Ele pondera que é preciso fazer um debate, junto com a base da sociedade, e a pergunta é: que país nós queremos? “Queremos um país sem trabalho escravo, um país onde haja regras que sejam respeitadas, no intuito de garantir dignidade? Queremos um país com liberdade econômica, sim, mas um país com garantia de um mínimo estado de bem estar social? Ou queremos um país que privilegia ricos em detrimento dos pobres?”
De acordo com o palestrante, a sociedade assistiu bestializada a aprovação da Reforma Trabalhista, sem entender o que são aqueles mais de 100 artigos reformados. “Apenas a vaga promessa de que mais e melhores empregos virão. Mais, talvez, mas padrão Bangladesh e Camboja”, critica.
E ele termina a sua brilhante fala com uma inspiradora previsão: “Nós podemos reconstruir o país, mas isso passa por garantir que nós erradiquemos o trabalho escravo, que é uma das piores formas de violação da dignidade humana. Se conseguirmos nos mobilizar para erradicar o trabalho escravo, talvez possamos ter no final desse caminho um país no qual teremos orgulho de viver”.
Debatedor 1 - Nilmário Miranda: histórias de bom combate
Atuando como debatedor no evento, o Secretário do Estado de Direitos Humanos Participação Social e Cidadania – SEDPAC, Nilmário Miranda, traçou, em sua fala, um panorama de sua atuação no âmbito dos direitos humanos, lembrando que chegou à Câmara dos Deputados em 1991. Em 1992, na Comissão de Trabalho, foi realizada diligência em Três Lagoas-MG para apurar denúncia de trabalho escravo. Denúncia essa, que envolvia adolescentes e indígenas. Posteriormente, foi criada a Subcomissão de Trabalho Escravo.
Em outra oportunidade, no Ministério Público Federal, Procuradoria Geral da República, lembrou que havia um grupo que debatia violência no campo. Participavam Procuradores, Deputados, muitas organizações, chamando atenção para dois nomes específicos: Procuradora Federal Deborah Duprat, atual Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, e a Raquel Dodge, que tomará posse em setembro como procuradora-geral da República.
Outra referência, também de 1995, foi a constituição, pela primeira vez na história do país, da Comissão de Direitos Humanos. Na 1ª reunião da comissão, com o Ministro Nelson Jobim, colocaram em pauta cerca de 10 pontos, sendo um deles o enfrentamento do trabalho escravo, o que veio a se desdobrar em audiência pública, com participação de auditores fiscais do trabalho. De acordo com o debatedor, houve forte pressão e, dando razão ao palestrante Leonardo Sakamoto, destacou que ainda podiam contar com partidos, hoje adversários. “Naquele tempo, ainda o novo nome da democracia era Direitos Humanos”, disse, afirmando ser necessário o resgate desse entendimento.
Em outro momento, como Ministro da Secretaria de Direitos Humanos, relatou que deveria apresentar três prioridades e uma delas foi justamente o combate ao trabalho escravo, o que gerou o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Mencionou ainda o surgimento da “lista suja” e crescimento do trabalho realizado pelo “Repórter Brasil”. “Achei que caminharíamos sempre em frente. A casa grande nunca conformou com o fim da escravidão”, frisou.
Para ele, é preciso discutir o tema, considerando fundamental a iniciativa do evento com todas as entidades participantes. “Nós temos o dever e a obrigação de articular, cada um do seu jeito. Sobretudo a juventude”, disse parabenizando a Professora da UFMG Lívia Miraglia, também presente. Nesse contexto, lembrou a importância dos jovens para o combate e sugeriu: “Deveríamos ter um pacto: Nenhum direito a menos”, finalizou.
Debatedor 2 - Daniel Dias de Moura: A verdade sobre a escravidão
Segundo debatedor do painel, o Conselheiro da OAB-MG Daniel Dias de Moura destacou o trabalho da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, da OAB-MG, destacando os seus dois eixos de atuação: 1) contar a verdade sobre a escravidão no país no período colonial e imperial; e 2) combate ao trabalho escravo contemporâneo, a conhecida “escravidão moderna”.
Ele ressaltou a importância do ex-presidente da OAB/MG, Luís Cláudio Chaves, ao abrir as portas da instituição para o tema. Lembrou, nesse sentido, que a instituição já intervinha na violação de direitos humanos e garantias constitucionais. Segundo ele, a gestão se abriu mais para a sociedade civil, tornando-se mais plural. Já com o presidente Antônio Fabrício Gonçalves, foi implementado trabalho mais direcionado ao combate à escravidão moderna.
“Esse combate através da verdade da escravidão clássica tornava um elo importantíssimo dessa luta que estamos enfrentando”, considera, explicando que a comissão tem parceria com várias instituições. E contou um caso: Em visita à região de Ubá, junto com a Faculdade de Comunicação da UFMG, constatou-se que de um total de 360 quilombos, apenas dois são reconhecidos pelo Estado. Daniel Moura lembrou que a Constituição de 1988, há quase 30 anos, determinou em suas Disposições Transitórias o reconhecimento dessas comunidades tradicionais. E até hoje isso ainda não se efetivou, criticou.
Ele se referiu ainda a trabalho junto à Universidade Federal de Minas Gerais, na pesquisa dos crimes de escravização e que tem produzido muitos frutos. “Nós da OAB-MG entendemos que contar a verdade da escravidão negra é conscientizar a sociedade sobre o quanto a exploração do trabalho escravo contemporâneo é nefasto”. O debatedor considera importante falar a respeito das lutas do povo negro, para esclarecer sobre a verdadeira história do Brasil. “Dar compreensão às pessoas do que é evidentemente o trabalho escravo. Até porque a história não foi contada nas escolas e faculdades”, afirmou.
Para Daniel Dias, “o sistema tem trabalhado diuturnamente nas mentes das pessoas, através das mídias”. Ele comentou uma notícia sobre resgate feito pelo Ministério do Trabalho no Vale do Jequitinhonha. Tratava-se de uma senhora que era submetida a trabalho escravo doméstico. Segundo o debatedor, a notícia se referiu a trabalho “análogo à de escravo” e à figura da “empregadora”. Quando, na verdade, era uma pessoa criminosa. Para o representante da OAB, a notícia deveria se reportar a alguém que praticou um crime. “É escravidão moderna e tem íntima ligação com o sistema escravista dos séculos passados”, resumiu.
Nesse contexto, ponderou que o papel da OAB é incutir na cabeça das pessoas através da história, da pesquisa e da ciência, a verdade dos fatos. Criticou o que vem acontecendo no Congresso, sob a égide de “modernização”. E rechaçou a tese de que a CLT, com seus 65 anos, precise ser tratada como um instrumento antigo, que precisa ser renovado. “Se por um lado, o sistema volta à escravidão clássica, por outro os trabalhadores se levantarão. Assim como os escravos se levantaram àquela época”, destacou.
Conforme ponderou, se a questão é modernizar, os sindicatos também precisam se renovar. Na sua visão, há de se encontrar um contraponto eficiente contra essa exploração ilimitada do trabalho humano. “Os sindicatos têm papel extremamente importante e devem ser preservados, defendidos, mas também precisam se reinventar”, avaliou. O caminho indicado por ele foi o da auto-regulação, um código de ética a ser cumprido pelos sindicalistas. Destacou que as penalidades devem ser previstas inclusive para os sindicalistas que se colocam, às vezes, segundo ele, “como verdadeiros capitães do mato”. Principalmente quando abrem mão de direitos dos trabalhadores para os patrões. “Esses tem que ser banidos! Os que cerceiam a democracia, praticam conduta antissindical”.
Ao final, convidou todos a conhecerem a Comissão da Verdade: “trabalho muito bom a nível nacional, somando forças com as instituições que estão na luta para o combate ao trabalho escravo”.