Você está aqui:

“Quem nos escraviza não tem medo de multa e a punição demora”, afirma trabalhador resgatado

publicado: 20/10/2023 às 20h38 | modificado: 27/10/2023 às 14h29

“Quando não temos de onde tirar o sustento de nossa família, colocamo-nos em situações de trabalho análogo à escravidão, uma vez que saímos da nossa zona de conforto. Quem nos escraviza não tem medo de ser abordado pela fiscalização, porque a punição é demorada e acabam pagando somente uma multa”, relatou, em depoimento especial, Gildásio Silva Meireles, resgatado de condições análogas à escravidão e, atualmente, agente de Direitos Humanos do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos do Estado do Maranhão, na manhã desta sexta (20), durante a 2ª parte do Congresso Internacional de Combate ao Trabalho Escravo e ao Tráfico de Pessoas, no auditório da Escola Judicial, Rua Guaicurus, 201, em Belo Horizonte-MG.

2023 1020 Cong comb trabalho escravo-22.jpg

Solidariedade

O palestrante do Congresso Gildásio Silva Meirelles, emocionado, contou que sofreu um acidente de carro, único meio de que dispõe para realizar seu trabalho. O motor sofreu uma fusão. Como o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos do Maranhão não dispõe de recursos para o custeio, foi feita uma vaquinha para que ele possa arcar com essa despesa. 

Quem puder ajudar e se solidarizar, o TRT-MG agradece. Doações podem ser feitas diretamente para o pix dele: 01549786393. 

O papel das instituições no combate ao trabalho escravo contemporâneo

Em seguida, ocorreu o Painel 1: “O papel das instituições no combate ao trabalho escravo contemporâneo” presidido pelo desembargador Delvan Barcelos Júnior. A primeira painelista foi a juíza do trabalho do TRT-RJ, Daniela Muller, que comparou a escravidão no passado e a atual, lembrando que existem muitas semelhanças entre elas até hoje. “A grande chibata é econômica e social, o que traz muita dificuldade ao trabalhador de ter vida digna e ele acaba se sujeitando a tudo. Até recentemente, o trabalho escravo moderno era considerado uma mera infração trabalhista e não criminal”, disse.

O segundo painelista foi o juiz do TRF da 1ª Região, Jorge Gustavo Serra de Macedo Costa, que abordou a competência da Justiça Federal para julgar os crimes praticados contra a organização do trabalho, como a condição análoga ao trabalho escravo. Ele afirmou que, em 2003, foi fixada a competência do TRF em atuar nos crimes previstos no artigo 149 do Código Penal. “Para caracterizar o delito, retira-se essa autodeterminação do empregado, de modo que ele não possa questionar como seu trabalho será desenvolvido e acaba aderindo a uma condição insalubre. O trabalhador fica sem alternativa. Tem também o dolo por parte do empregador ao fazer valer o seu poder econômico sobre o trabalhador”, explicou.

Acrescentou ainda que o depoimento do trabalhador resgatado tem muito peso atualmente e ele é ouvido na condição de vítima. Há, segundo Jorge Gustavo, um problema sério de reinserção da vítima no mercado de trabalho após ser resgatada. “O que fazemos com o trabalhador resgatado para que não se sujeite novamente às mesmas condições degradantes?”, questionou.

2023 1020 Cong comb trabalho escravo-06.jpg

A terceira painelista foi a auditora fiscal do MTE, Cynthia Alves de Saldanha, que frisou que, em 1995, foi criado o Grupo de Fiscalização Móvel de Erradicação do Trabalho Escravo e já foram resgatados mais de 51 mil trabalhadores desde então. “Neste ano, 2.592 trabalhadores foram resgatados, dos quais 443 em Minas Gerais. O trabalho escravo contemporâneo ainda é grave e carece de políticas públicas de enfrentamento e prevenção, para que não ocorra revitimização”, salientou. Ela ainda explicou como funciona a rotina de fiscalização dos auditores do trabalho e que, desde 2017, vem aumentando o número de trabalhadoras domésticas resgatadas em condições análogas à escravidão, devido ao trabalho árduo de outras auditoras fiscais.

O painel foi encerrado pelo procurador do trabalho Paulo Gonçalves Veloso. Ele falou que os empregadores que escravizam dificilmente ficam presos e, por isso, é preciso afetar a cadeia produtiva, por exemplo, da cana e do café, para que não seja lucrativo contratar esse tipo de mão de obra. “O MPT deve agir para cessar essa conduta e fazer com que os empregadores paguem caro por isso. É necessário que o MPT firme com o empregador termos de ajuste de conduta pleiteando obrigações para fazer cessar aquela condição e peça indenização por dano moral coletivo e dano individual para cada vítima”, destacou.

Agenda 2030 da ONU e trabalho escravo 

No Painel 2: “A agenda 2030 da ONU e o trabalho escravo contemporâneo como a antítese do trabalho decente”, presidido por Laura Diamantino Tostes e pela procuradora do trabalho Tatiana Simonetti, a primeira a fazer a sua apresentação foi a representante da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Maria Cláudia Falcão. Ela afirmou ser importante retomar a agenda 2030 que, na opinião dela, está adormecida.

Depois foi a vez da representante do Global Fund to End Modern Slavery (GFEMS), Fernanda Carvalho, que falou das perspectivas internacionais sobre Direitos Humanos e diferentes legislações mundiais, bem como dos impactos gerados no Brasil na cadeia produtiva, sob uma lógica preventiva.

Em seguida, ocorreu a apresentação da representante da Embaixada dos EUA no Brasil, Anada Osório, que mostrou os bastidores das embaixadas e dos consulados e o que fazem em relação ao tema, como financiamentos e campanhas em parceria com outras instituições governamentais.

O quarto painelista foi o gestor do Programa Trabalho Seguro, desembargador do TRT-MG Marcelo Lamego Pertence. Ele abordou três itens importantes da agenda 2030, como a erradicação da pobreza, o trabalho decente/desenvolvimento sustentável e redução das desigualdades dentro do país.

Escravidão: dor universal

2023 1020 Cong comb trabalho escravo-05.jpg

Durante a abertura do evento, o presidente do TRT-MG, desembargador Ricardo Mohallem, destacou que o trabalho escravo pode ser comparado a uma dor social universal. Ele utilizou personagens da literatura brasileira que retratam a escravidão para tratar do tema e do desprezo absoluto pela vida do escravizado. Segundo ele, a gente continua vendo essa dor universal, sobretudo em Minas Gerais, que lidera o ranking. Que possamos combater essa situação”.

A 2ª vice-presidente do TRT-MG, ouvidora e diretora da Escola Judicial, desembargadora Rosemary de Oliveira Pires Afonso, disse que o trabalho humano degradado pela escravidão continua um assunto grave, porque invade a própria existência do ser, em sua dignidade. “Sem liberdade, a pessoa não encontra sua plenitude. É preciso que possamos dar total punição àqueles que seguram os chicotes. Espero que um dia não tenhamos que falar sobre trabalho escravo como algo atual e sim como algo que ficou no passado”, concluiu.

A mesa de honra foi composta pelo presidente do TRT-MG, desembargador Ricardo Mohallem; pela 2ª vice-presidente, ouvidora e diretora da Escola Judicial, desembargadora Rosemary Pires Afonso; pela presidente do TRF-6, desembargadora Mônica Jaqueline Sifuentes; pelo desembargador do TJMG, Delvan Barcelos Júnior; pelo deputado estadual Betão; pelo superintendente do Ministério do Trabalho e Emprego em MG, Carlos Calazans, e pela presidente da Comissão de Enfrentamento ao Trabalho Escravo da OAB-MG, professora Lívia Moreira Miraglia.

Servidão

A exibição do documentário Servidão abriu os trabalhos da segunda parte do congresso, na tarde de sexta-feira, e, logo em seguida, os participantes da roda de conversa, intermediada pela desembargadora Adriana Goulart de Sena Orsini abordaram, sob ângulos diversos, o tema Trabalho Escravo. O cineasta, produtor de cinema e diretor do filme Servidão, Renato Barbieri, alertou para o risco que a sociedade contemporânea impõe ao planeta, provocando um colapso ambiental, devido à lógica de que o lucro é o valor de tudo. Para ele, estamos chegando a uma década decisiva, e as mudanças precisam vir agora, pois as gerações futuras não poderão realizá-la. “As instituições públicas e o terceiro setor têm importante papel de gerar um novo pacto social para promover a mudança necessária pela atual geração”, afirmou.

2023 1020 Cong comb trabalho escravo-48.jpg

Outro integrante da roda de conversa foi Ricardo Rezende Figueira, coordenador do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo. Ele atua há mais de 40 anos como defensor dos direitos humanos. Morou no estado do Pará por 20 anos, e recebia pessoas que fugiam da escravidão nas fazendas. Conforme relatou, a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel em 1995 e uma maior abertura do Ministério Público possibilitaram o relato às autoridades da situação da violência no campo, na qual havia a escravização de pessoas.

Já o jornalista Leandro Schmitz falou sobre o papel da imprensa nos episódios tristes de trabalho análogo à escravidão. O jornalista é autor de uma reportagem que denunciou a existência de trabalho análogo à condição de escravo na Prefeitura de Joinville e foi premiado. O fato denunciado ganhou repercussão nacional.

Trincheira de combate garantiu avanços

O painel de encerramento trouxe o jornalista, professor e cientista político Leonardo Sakamoto, que apresentou diversos dados sobre a realidade do trabalho escravo no Brasil, um país que, conforme disse, avançou no combate ao trabalho escravo nos últimos 28 anos. “Somos considerados um exemplo, uma referência no cenário mundial. O importante é que o combate ao trabalho escravo resistiu, houve trincheira de auditores, do Ministério Público do Trabalho, de policiais federais, da Justiça do Trabalho”.

No entanto, embora tenha se tornado um exemplo global, o país começou a ficar para trás, em termos de inovação no combate ao Trabalho Escravo. Desde 1995, no Brasil, foram resgatadas 61 mil pessoas em situação de trabalho escravo e centenas de empresas foram responsabilizadas pelo poder público envolvendo a cadeia produtiva e muitas delas passaram a integrar a lista suja do trabalho escravo.

2023 1020 Cong comb trabalho escravo-57.jpg

Rastreamento da cadeia produtiva

Ele citou casos importantes, como o recente resgate nas plantações de vinho no sul do país, fatos que provocaram choque. “A produção relacionada à exploração do trabalho escravo não está desconectada de nosso consumo no dia a dia. Trabalho escravo existe vinculado ao consumo”. Por isso, Sakamoto defende o rastreamento de cadeia, exposição de marcas, para que o trabalho escravo seja combatido de forma estrutural. Punir pontualmente cada um dos ofensores não surte efeito, na opinião do jornalista.

Para ele, é preciso agir em cadeia produtiva, pois trabalho escravo não é usado porque a pessoa é má. É um processo de cortes de custos que se estende dentro das empresas até chegar abaixo da dignidade. Aí surgem jornadas degradantes, servidão por dívida e condições precárias. Primeiro, as empresas adotam medidas para reduzir custos e embolsar lucro, mas, por outro lado, querem concorrer em um ambiente competitivo. “O trabalho escravo é uma forma de violência contra o ser humano, que é colocado no altar da competitividade”.

Inovação necessária

Para Sakamoto, é preciso também olhar as grandes empresas para entender o que está ocorrendo na sua cadeia de valor. O Brasil precisa evoluir para passar a responsabilizá-la. Isso é avançar e não ficar apenas na responsabilização dos beneficiários da mão de obra escrava. “É necessário atuar na causa do processo, senão, estaremos enxugando gelo”.

O jornalista defende que é necessário avançar para além da terceirização fraudulenta, da contratação de trabalhadores pelos "gatos". “Mas o consumidor e a sociedade precisam estar de olho no mercado, por exemplo, obrigando o frigorífico para que ele esteja de olho nos fornecedores. Dessa forma, o sistema econômico pode expurgar o trabalho escravo e não expurgar as empresas”.

2023 1020 Cong comb trabalho escravo-58.jpg

O painel de encerramento foi mediado pela desembargadora Paula Oliveira Cantelli, representante do Comitê Estadual Judicial de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas do CNJ.

Ao encerrar o evento, o desembargador Emerson José Alves Lage parabenizou os organizadores, em nome da desembargadora Rosemary de Oliveira Pires, diretora da Escola Judicial do TRT-MG.

O Congresso encerrado nesta sexta-feira (20/10) teve o primeiro dia em 11/10, quando participaram como palestrantes os ministros do TST, Lelio Bentes, presidente da corte, e Maurício Godinho Delgado, diretor da Escola Nacional da Magistratura Trabalhista (Enamat). 

O evento foi promovido pela Escola Judicial do TRT da 3ª Região e pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG, em parceria com o Comitê Estadual Judicial de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condições Análogas às de Escravo e ao Tráfico de Pessoas do CNJ, o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Veja galeria de fotos

O evento contou com transmissão ao vivo pelo canal do TRT-MG no YouTube . Assistam ao evento na íntegra abaixo:

Visualizações: