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Carlos Borlido Haddad: O crime compensa ou vale a pena investir em "compliance" na área criminal no Brasil?

publicado: 12/07/2018 às 00h02 | modificado: 12/07/2018 às 10h29

Logo do NJ EspecialO quarto palestrante do dia foi o juiz federal Carlos Augusto Borlido Haddad, juiz federal, professor da Faculdade de Direito da UFMG, coordenador da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG e pós-doutor pela Universidade de Michigan (2014). Ele falou sobre “compliance” na área criminal.

O professor iniciou sua exposição contando a história de uma pequena ilha no Pacífico Sul, colonizada por Ingleses, com baixíssimos índices de criminalidade, em que os cidadãos eram pouco ou nada fiscalizados, simplesmente porque sempre agiam corretamente. Contou que, certo dia, um corretor de imóveis chegou a essa ilha e lesou duas pessoas que fizeram uma compra: “Elas entregaram o dinheiro, mas não receberam a propriedade e acionaram esse corretor na justiça em uma ação cível. Como o corretor era insolvente, não tinha recursos para reparar os danos, o juiz teve uma ideia inovadora: condenou todos os corretores da cidade a reparar o dano das vítimas, numa espécie de responsabilidade social”.

Segundo o palestrante, essa história leva a duas conclusões. A primeira delas é que, se fosse no Brasil, o juiz seria preso, provavelmente, afinal, “só mesmo num país muito bárbaro é que alguém pode responder pelo ato de um terceiro”, ironizou. Mas ele ressaltou que há uma segunda conclusão: “A de que se não se agir em conformidade com a lei alguém pode ser punido mesmo que seja por um ato praticado por um terceiro. E quando falamos em conformidade, estamos falando em compliance”, destacou o professor. Ele explicou que “compliance” é, na verdade, uma palavra vazia, pouco expressiva, que não diz muito do que realmente evidencia: “agir conforme a lei”. No âmbito do Direito Penal, acrescenta Haddad, para tipos penais clássicos, é muito fácil saber “como agir em conformidade” para não se cometer um homicídio: basta, por exemplo, não atirar em alguém. Mas, no contexto corporativo, surgem alguns melindres e nuances, havendo mais dificuldades e menos clareza.

Compliance e responsabilidade - Compliance, como pontua o juiz federal, está muito atrelada à ideia de responsabilidade e, assim, à ideia do Direito Penal, cuja estrutura, segundo o magistrado, é muito simples: “Escolhe-se um bem jurídico que se deve proteger (como a vida, a saúde pública, a organização do trabalho). Em seguida, escolhe-se a forma de fazer essa proteção, por meio de tipos penais (que preveem um perigo abstrato, um perigo concreto ou um dano efetivo) Feito isso, escolhem-se as punições que, no Brasil, são duas: as penas privativas de liberdade e as penas de multa, havendo penas restritivas de direito em caráter substitutivo”. Então, segundo o professor, o mecanismo é relativamente simples. Nessa forma de tutelar um bem jurídico, temos penas que variam de 3 meses a 30 anos, essa no caso do homicídio qualificado. No compliance, esclarece Haddad, é um pouco parecido, já que, ao pensarmos em prevenção e reparação, isso de certa maneira faz parte do Direito Penal.

De acordo com o palestrante, a melhor analogia que se pode fazer entre compliance e Direito penal é a teoria do “carrot-and-stick” (a cenoura e a varinha). E explica: “Eu, andando num burrinho, amarro uma cenoura na ponta da varinha e o burrinho vai sendo estimulado a andar e a me transportar. Isso é compliance, eu estou encorajando uma conduta desejável. Agora, se o burrinho empaca e anda para trás, eu teria de pegar a varinha e dar umas varadas no burrinho, pra ver se ele se emenda. Isso é Direito Penal. Pune condutas indesejáveis. Então, na verdade, eles não são figuras excludentes, mas atuam no mesmo contexto e podem variar de uma forma ou de outra”.

Nesse ponto de sua exposição, Haddad ressalta que, hoje, a tendência mundial (no Brasil ainda nem tanto) é tentar reduzir um pouco o Direito Penal e se dedicar mais às regras de um programa de compliance. “Mas conseguiremos aplicar no Brasil esses programas de compliance como se aplica no exterior?” – indaga o professor. Isso porque, segundo ele, no exterior, em geral, tem-se, de modo mais evidente, uma preocupação com o aspecto preventivo, de impedir que a lei seja violada. Ou então, um papel de reforço, de confirmação do Direito: uma vez detectado o ilícito, ele tem que ser reparado. Mas, a doutrina brasileira, pelo menos na área criminal, limita-se muito à punição do crime. O magistrado lembra que o decreto-lei 231, na Itália, instituiu uma regulamentação que também fala quase que exclusivamente em prevenção. De forma diferente, nos Estados Unidos, país onde teve origem a compliance, o direito penal também já tem um enfoque na reparação da vítima. E, na visão do expositor, é exatamente aí que se deve fazer uma tradução: do que se aplica lá, para o que é possível se aplicar aqui.

A origem da compliance  - Sobre a origem do sistema, o professor ensina que, desde a década de 70, as empresas americanas vêm adotando programas de compliance. Ele diz que, em 1991, especificamente na área penal, uma comissão nos EUA criou um capítulo no “sentence Gride Lines”, que trata de um conjunto de regras para se fixar a pena na sentença do processo penal americano. Isso porque havia muita disparidade nos Estados Unidos na fixação das penas, ou seja, casos similares com penas totalmente diferentes. Essa desconfiança do Congresso em relação aos juízes resultou num calhamaço de cerca de 600 páginas de regras, quase que matemáticas, estabelecendo regras de fixação das penas. Criado em 1991, o capítulo 8º foi voltado às pessoas jurídicas, ou seja, nos Estados Unidos, admite-se a responsabilidade penal das empresas. A partir daí, completa o juiz, ficou estabelecido que a pena pecuniária de multa poderia ser reduzida se a empresa tiver um programa de compliance.  Nesse caso, também os promotores podem deixar de ajuizar uma ação penal contra a empresa que adote esses programas e, até mesmo o juiz, ao condenar uma empresa, poderá impor a ela a obrigação de seguir regras de compliance, como uma forma de pena, uma prevenção especial para impedir que a empresa volte a delinquir no futuro.

Dificuldades da compliance no Brasil - Ao comparar a realidade americana com a brasileira, o palestrante lembra que, de forma totalmente distinta dos EUA, no Brasil, a pessoa jurídica não tem responsabilidade criminal, salvo para crimes ambientais. Ele destaca ainda que o Ministério Público brasileiro, diferentemente do americano, não tem disponibilidade da ação penal (ele é obrigado a propor a ação penal). Nesse ponto, o professor registra que a resolução 181 de 2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, que dispôs sobre um acordo de não persecução penal, não fez sequer referencia à pessoa jurídica e a medidas de compliance.

E mais: como destaca o professor, nos Estados Unidos, a ideia é preservar a empresa o máximo possível. Por isso, algumas vezes, as regras de compliance permitem que multas, substanciais, sejam reduzidas até 95%. E há benefícios se a empresa se declara culpada, o que levou o país a um resultado interessante em 2016: 97,7% das empresas declararam-se culpadas quando acusadas em processo criminalDiante desse cenário, dessas realidades tão distintas, o palestrante pergunta: “Como vamos traduzir a prática da compliance para que possa ser aplicada aqui no Brasil? Aqui, onde não há nenhum traço no nosso direito penal que incentive as empresas a adotarem essas regras?”.

A lei brasileira - Diante das particularidades da lei brasileira, o professor registrou que, como tentativa de facilitar a adoção de regras de compliance no Brasil, foi editada a lei 12.846/2013, que teve seu regulamento no decreto 8.420/2015, estabelecendo regras civis e administrativas a serem seguidas por empresas que tenham cometido atos contra a administração pública nacional ou estrangeira. Conforme frisou, essa lei autoriza a previsão de redução da pena de multa, caso essas empresas adotem um programa de compliance, com investigação, regras de prevenção e reparação de práticas ilícitas. Mas isso só na esfera cível, ressalta o magistrado.

Foto: Leonardo Andrade.

Nesse ponto, Haddad lamenta que o direito penal brasileiro ainda não tenha sido chamado a participar desse novo esforço preventivo: “A lei dos crimes ambientais nem toca em nada relacionado a compliance, o código penal não prevê nenhuma mitigação de responsabilidade, quando muito pode-se aplicar a atenuante genérica do artigo 66, que dispõe que um fato relevante, posterior ou anterior ao crime, pode ser considerado para minimizar a pena.”

Cinco pilares básicos do programa de compliance - Como pontua o professor, a implantação de um programa de compliance não pode ser realizada de qualquer maneira. Ele ensina que existem cinco pilares básicos para que as regras de compliance sejam seguidas. E destaca:

“1- O primeiro deles é ter o suporte da liderança da empresa. Se não houver isso, provavelmente, vai ser um programa que os Estados Unidos chamam de “window dressing”, ou seja, um programa de vitrine de ornamentação, traduzido para o português, um programa de fachada, que não resolve nada. 2 - Como segundo pilar, será preciso mapear, identificar os riscos existentes naquele negócio, na atividade econômica desenvolvida pela empresa. 3 - Em terceiro lugar, identificados os riscos, será necessário estabelecer políticas de controle, assim como procedimentos para tentar coibir, minorar, ou mesmo impedir que esses riscos se tornem lesões, danos, violações. 4 - Depois, toda a empresa deverá ser comunicada disso e treinada para a implantação do programa. 5 - Por último, será preciso um acompanhamento constante, com fiscalizações e eventuais reparações, o que também faz parte do programa de compliance” .

O crime compensa? Vale a pena investir em compliance? - Como observa o palestrante, por aí já se pode perceber o quão oneroso é implantar um programa de compliance e também vislumbrar “a matemática do crime”, ou seja, os custos do crime. E complementa: “Se fizermos uma análise econômica do crime, concluiríamos que ele não vai funcionar quando o que a pessoa receber com o crime for menor do que a probabilidade de ser preso, de ser condenado. Se o ganho for muito maior do que a chance de ser preso, ainda que a pena seja severa, o crime compensa. Essa mesma equação eu acredito que vale para o compliance. A empresa vai verificar os riscos, saber que precisa investir muito, vai avaliar se, para coibir esses riscos, esse investimento vale a pena. Tanto é verdade que empresas de pequeno porte talvez nem tenham ideia do que seja um programa de compliance. Está muito além da capacidade econômica delas”.

O professor mostra uma triste realidade. Ele ressalta que as empresas que transgridem as regras, inclusive se valendo do trabalho escravo, podem ficar tranquilas quanto às possibilidades de sofrerem punições. Da mesma forma, se levarem em conta os riscos que correm, as empresas não precisam se preocupar com investimentos em compliance. “No âmbito criminal, a punição é quase nada”, lamenta o Haddad, revelando números assustadores:

“Em pesquisa realizada pela clínica de trabalho escravo, foram examinados 373 relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho, relativos aos anos de 2004 a 2017. Desses relatórios, 157 constataram trabalho escravo. Desses, 118 viraram inquéritos policiais, resultando em 79 ações ajuizadas. Dessas ações, 34 resultaram em sentenças, com 21 condenações, sendo que apenas 3 transitaram em julgado. E, desses 3 condenados, apenas um está preso… e ainda assim, só porque o advogado dele perdeu o prazo para o recurso. Senão, teríamos um zero no cume da pirâmide da impunidade” – lamenta Haddad.

Na avaliação do palestrante, se o risco de ser punido criminalmente é tão baixo, porque uma empresa faria um programa de compliance? Ele acredita que apenas em duas situações: quando a empresa tiver aversão ao risco, ou quando ela for extremamente ética. “E se ela for extremamente ética, agir de acordo com a lei é tão natural quanto respirar esse ar aqui, que nós não vemos e que é essencial para nossa existência. Então, se houvesse ética, talvez não houvesse espaço, nem para compliance, nem para o Direito Penal”, arrematou Haddad.

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