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Juiz reconhece a carreteiro jornada de 20 horas por dia

publicado: 05/02/2012 às 03h03 | modificado: 05/02/2012 às 05h03
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Publicada originalmente em 11/10/2011

As salas de audiências da Justiça do Trabalho de Minas são, muitas vezes, palco de situações inusitadas: é reclamante que desmaia, outra que tem crise de choro, a reclamada assaltada na porta do prédio, entre outras. Mas, sobretudo, são muitas, muitas histórias de vida, por vezes cruas e chocantes, outras surpreendentes, hilárias ou comoventes. Tem juiz que coleciona esses casos curiosos, pedaços de realidade com traços de surrealismo, que vão construindo a história da Justiça Trabalhista e redefinindo a própria lei que a rege nos percalços de um cotidiano, a um só tempo rico e assustador, que mostra, não raro, que a vida é maior que a lei. E ser juiz do trabalho é enfrentar tudo isso, ao vivo e em cores, num cotidiano alucinante. É "matar um leão por dia", como dizem os próprios magistrados.

Em cada caso, o julgador tem de se virar com o que tem nas mãos. E às vezes não é muito: um único depoimento de três linhas, um recibo anotado em papel de pão, um formulário amarrotado com a digital no lugar da assinatura. A matéria prima são as provas, mas a ferramenta é a lei, nem sempre atualizada, nem sempre completa, muitas vezes curta para alcançar a complexa situação em exame. Mas é o instrumento do juiz, que com ela tem de esculpir a decisão. Decisão essa que vai interferir na vida de, pelo menos, duas pessoas envolvidas na pendenga judicial. È qualidade essencial ao juiz do trabalho ter sensibilidade suficiente para captar todas as nuances dessa realidade e transportar para a sentença, na árdua tarefa de perseguir a justiça do caso concreto.

E foi com um caso sui generis desses que se deparou o juiz Ricardo Marcelo Silva, titular da 24ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, ao julgar a ação de um carreteiro que alegou fazer uma jornada de 20 horas diárias!

Ele afirmou que foi contratado pela FL Logística Brasil Ltda. para exercer a função de motorista carreteiro, transportando produtos da Spal Indústria Brasileira de Bebidas S/A. Disse ele que pegava serviço às 8h de uma segunda-feira e só largava às 8h da outra segunda, trabalhando em média 20 horas por dia, em semanas alternadas, sem intervalo intrajornada ou interjornadas. Alegou que trabalhava domingos e feriados, de dia e de noite, sem jamais ter recebido horas extras.

O juiz ouviu incrédulo o relato, pois como poderia um cidadão trabalhar 20 horas por dia? E onde estariam as horas de repouso, de sono, alimentação e lazer? "De princípio, assustei. Depois, ouvi-o, atentamente, como é de meu dever, e compreendi bem" , relatou.

De fato, mesmo algo que parece humanamente impossível tem lugar na Justiça do Trabalho, onde a realidade é muito maior, mais dura e crua do que sonha a nossa vã filosofia... E foi o que constatou o juiz ao ir tomando conhecimento do caso.

O pedido era simples, mais que corriqueiro: horas extras que, nos dizeres do juiz, é "o pau que rola" rotineiramente na Justiça do Trabalho. Mas, na análise de cada caso, aconselha o julgador, todo cuidado é pouco. "Repito: todo cuidado é pouco. Aliás, o caso serve para ilustrar quão rica é a realidade dos fatos que nos vem à consideração e como a velha e boa CLT é boa" . Pois foi pura e simplesmente a velha e boa CLT que socorreu o magistrado, oferecendo a ele a saída para o caso incomum que tinha nas mãos.

A Spal contestou o pedido, alegando que a atividade do reclamante era externa, o que a deixaria a salvo do pagamento de horas extras, pois o artigo 62, inciso I da CLT, exclui o trabalhador que presta serviços fora do estabelecimento do regime de jornada de trabalho. Ou seja, se o empregado presta serviços externos, sem controle de horário pelo empregador, com certa autonomia para estipular a própria jornada, ele não tem direito a receber horas extras.

Mas, ao ouvir as testemunhas, o juiz apurou que as coisas não eram bem assim. Um outro carreteiro ouvido afirmou que o reclamante trabalhava durante uma semana inteira, direto, e folgava na semana seguinte, de segunda de manhã de uma semana a segunda de manhã da outra semana, dormindo até duas horas por noite. "Olha que loucura!" , pontuou o juiz, em sua sentença. A testemunha esclareceu que a reclamada monitorava os caminhões, mediante radar, acionando os motoristas por telefone quando paravam. Isso foi confirmado por outra testemunha. Essa situação invalida o argumento de que o trabalho externo do reclamante impossibilitaria o controle da jornada, pois demonstra o total controle pela empregadora em relação ao horário de trabalho do carreteiro. "Acerca do tema relativo ao tempo que os motoristas tinham para descanso, as testemunhas indicadas pela reclamada nada souberam informar e nem podiam, porque nenhuma delas acompanhou a rotina deles, muito menos a experimentaram, na medida em que ocupantes de funções alheias às de motorista" , concluiu o juiz.

E foi aí que a CLT mostrou a sua força e o seu poder de definir os contornos do direito e proporcionar justiça a quem trabalha. Socorreu o juiz o artigo 4º do texto celetista: "Com os olhos postos no vetusto e ótimo art. 4º da CLT considera-se como de serviço todo o tempo que o empregado estiver aguardando ou executando ordens; e este era, exatamente, o caso do suplicante, ficava de segunda a segunda à disposição da ré" , arrematou o magistrado, triunfante sobre a questão solucionada.

Assim, levando em conta a prova testemunhal produzida, bem como o depoimento pessoal do próprio autor, o julgador considerou que o reclamante trabalhava das 7h da segunda-feira às 7h da segunda-feira seguinte, com dois intervalos de 30 minutos para refeição e descanso, e um intervalo para dormir com duração aproximada de 3 horas, em semanas alternadas. "O horário de trabalho assim fixado aponta para labor em hora extraordinária, considerando-se como tais as trabalhadas além da 8ª diária", arrematou o juiz sentenciante, deferindo as horas extras pedidas pelo carreteiro, acrescidas dos devidos reflexos legais. E bateu o martelo sobre mais um caso solucionado. A empresa recorreu, mas depois as partes entraram em acordo.

Processo

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