NJ ESPECIAL: Turma anula, de ofício, processo já em fase de execução ao constatar ausência de curador em ação contra réu com mal de Alzheimer
No mundo atual, cresce o número de pessoas acometidas do "mal de Alzheimer". Essa doença que, pouco a pouco, vai matando o cérebro da pessoa, geralmente idosa e com tantas coisas para contar, é estatística crescente na sociedade moderna. Não se sabe, ao certo, se a causa disso é o excesso de informação da era globalizada, ou o fato de as pessoas estarem vivendo mais ou, de resto, porque antes não se conhecia a doença... Sabe-se apenas que o mal de Alzheimer não tem cura e evolui, pouco a pouco, a ponto de deixar o indivíduo completamente incapaz.
Recentemente, a 10ª Turma do TRT de Minas julgou um caso em que se constatou que o réu na ação trabalhista sofria do "mal de Alzheimer". No recurso analisado pela Turma, a reclamante não se conformava com a sentença que rejeitou seu pedido de reconhecimento de vínculo de emprego com o réu e de pagamento dos direitos trabalhistas decorrentes. Mas, acolhendo o entendimento da relatora, desembargadora Rosemary de Oliveira Pires, a Turma declarou, de ofício, a nulidade absoluta dos atos praticados desde a audiência inaugural e determinou o retorno do processo à Vara de origem, para que fosse nomeado curador especial ao reclamado, em obediência aos artigos 4º, III, do CC/02 e 76, I, do Novo CPC.
É que ficou constatado que, embora o réu fosse pessoa absolutamente incapaz de exercer pessoalmente os atos da vida civil (art. 3º, II, do CCB), não houve nomeação de curador especial para acompanhar o processo, na forma exigida do antigo artigo 8º do CPC/73, correspondente ao artigo 71 do novo CPC.
Nesta NJ Especial, vamos detalhar um pouco dessa rica decisão e, ao final, o leitor poderá conferir mais jurisprudência sobre a matéria.
Entendendo o caso: A execução do réu, portador de AlzheimerAntes de o processo chegar às mãos da 10ª Turma do TRT-MG, um longo caminho foi percorrido. Em seu exame, a relatora nos conta todo o desenrolar do processo, de forma detalhada e esclarecedora. A narrativa nos mostra como a triste doença do réu tornou difícil a solução do caso. E os prejuízos se espalharam por todos os lados: para o réu, para a reclamante e para a aplicação da justiça. Vejamos:
Alegando ter trabalhado para o réu, Sr. Luiz, a reclamante buscou o reconhecimento de vínculo de emprego, com o pagamento dos direitos decorrentes. Já na audiência inaugural, o Sr. Luiz não compareceu, tendo sido substituído por sua cunhada e sobrinha. Elas afirmaram que ele estava doente, sem condições de gerir sua pessoa e bens, encontrando-se interditado. Inclusive, apresentaram um documento em que um médico sugeria o urgente encaminhamento do réu, então com 72 anos, à assistência social, para que fosse alojado em casa de idosos, porque apresentava sinais de Alzheimer. O profissional explicou que o Sr. Luiz morava sozinho e não tinha condições de cuidar de sua pessoa e bens.
Diante disso, o juiz concedeu um prazo para que a sobrinha e cunhada do réu apresentassem o documento comprovando a interdição, mas elas não o fizeram. Determinou-se, então, a intimação do réu por mandado judicial, realizada na pessoa do seu irmão. Mas, mais uma vez, o Sr. Luiz não compareceu à audiência marcada para a instrução do processo e, assim, o juiz declarou sua revelia, aplicando a ele a pena de confissão. Resultado: foi reconhecido o vínculo de emprego pretendido pela reclamante e o réu foi condenado a lhe pagar as parcelas trabalhistas decorrentes.
Após o trânsito em julgado da sentença, o valor do crédito da reclamante foi apurado em R$20.851,71 e o Sr. Luiz foi intimado para pagá-la, no prazo de 5 dias, sob pena de execução e cadastro no BNDT (Banco Nacional de Devedores Trabalhistas). Mas, permanecendo inerte o réu, expediu-se mandado de penhora de bens para a garantia da execução. Ao comparecer na residência do Sr. Luiz para cumprir o mandado, o oficial de justiça se deparou com quadro trágico, narrado em sua certidão:
"Deixei de proceder à penhora de bens do executado Luiz, por não encontrá-los à garantia da execução. Esclareço que trata-se de endereço da residência do Sr. Luiz, que se encontra em péssimo estado de conservação e é guarnecido ao mínimo necessário à sua sobrevivência. Esclareço mais, é idoso, apresenta-se com algum distúrbio mental (AVC?), tendo declarado morar sozinho, ser aposentado por invalidez e uma parente (cunhada) toma conta de sua alimentação, nãos sabendo precisar idade e não sabendo informar corretamente o nome da cunhada (...). E mais, segundo a Sra. Maria Gonçalves, que mora na proximidade, o Sr. Luiz é portador de mal de Alzheimer, não possuindo nenhum bem, móvel ou imóvel, sendo que a casa onde mora pertence aos herdeiros de Geraldo Cornélio Ramos, sobrevivendo com auxílio doença (LOAS) e ajuda humanitária".
Procedeu-se então ao bloqueio das contas bancárias do réu, via Bacenjud, tendo sido penhorado o valor R$685,57, após o que o Sr. Luiz se manifestou para requerer insubsistência da penhora, invocando a impenhorabilidade na forma do art. 833, IV do Novo CPC, por se tratar da única conta bancária que possuía e através da qual recebia o seu benefício de aposentadoria, sua única fonte de sustento.
Nulidade da citaçãoFinalmente, tendo em vista a Semana Nacional da Conciliação Trabalhista, foi realizada audiência de conciliação, na qual, dessa vez, esteve presente apenas o Sr. Luiz. Foi quando o juiz de primeiro grau decidiu anular o processo desde a citação, determinando a realização de nova audiência inaugural e liberação do dinheiro bloqueado, ao constatar que a citação do Sr. Luiz havia sido feita na pessoa de terceiro, seu irmão. Em sua decisão, o magistrado ressaltou que, apesar da doutrina e jurisprudência admitirem a citação não pessoal na Justiça do Trabalho, o caso concreto requer posição diferente: "O reclamado é pessoa física, de poucos recursos, com problemas de fala e audição. Além disso, não há prova de que o Sr. Tito, que recebeu a citação, informou-lhe sobre a audiência. Tenho, assim, que a citação de f. 22 é NULA e sendo esta nulidade absoluta, pode e deve ser conhecida de ofício pelo Juiz", destacou, na sentença.
Mas a coisa não acabou por aí. Após a reclamante recorrer da decisão e não ter seu apelo conhecido, por vícios formais, foi realizada nova audiência de instrução, na qual compareceram a reclamante e sua advogada e o reclamado desacompanhado de advogado. A defesa foi oralmente apresentada pelo réu com assistência de sua sobrinha, oportunidade em que a reclamante requereu a aplicação da pena de confissão ficta ante a deficiência da defesa apresentada. Posteriormente, na audiência em prosseguimento, novamente compareceu a reclamante com seu procurador e apenas a advogada do Sr. Luiz, a qual apresentou atestado médico justificando a ausência do seu cliente, que se encontrava "acamado com impossibilidade de andar devido a fratura no fêmur esquerdo".
Finalmente, ambas as partes compareceram em nova audiência de instrução na qual a reclamante prestou depoimento pessoal e ouviu-se como informante a testemunha do réu. Especificamente com relação ao depoimento pessoal do Sr. Luiz, o juiz de primeiro grau fez constar em ata observações bastante esclarecedoras quanto ao seu estado de saúde: o réu é um senhor de idade que encontra-se numa cadeira de rodas e não consegue compreender as perguntas que lhe são formuladas; embora lhe tenha sido perguntado o número de vezes que a reclamante lhe prestava serviços, ele enumerava fatos sem ligação com a causa, como algo sobre hospital ou sobre sua condição de saúde. Em seguida, o magistrado proferiu sentença, em que julgou improcedentes os pedidos da reclamante.
Recurso da reclamanteInconformada com a improcedência dos pedidos, a reclamante recorreu da sentença. Em síntese, alegou a validade da citação do Sr. Luiz e pediu que se regularizasse a representação processual, já que ele estava em cadeira de rodas e não conseguia compreender as perguntas que lhe eram feitas. Pediu, ainda, que fosse reconhecida a confissão do réu, em razão da deficiência da defesa apresentada por ele, com a procedência dos pedidos formulados na ação. Mas, a Turma acolheu os fundamentos da relatora e foi por outro caminho.
Réu com doença incapacitante: ausência de curador para acompanhar o processo gera nulidade absolutaConforme ressaltou a desembargadora, com a publicação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/ 2015), foram revogados os incisos I, II e III do artigo 3º do Código Civil de 2002, que trata das pessoas absolutamente incapazes, e introduzido ao artigo 4º, que dispõe sobre as pessoas relativamente incapazes, considerando como tais: "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade" (art. 4º, III).
Prosseguindo em sua análise, a relatora registrou que, de acordo o artigo 70 do Novo CPC, (correspondente ao artigo 7º do CPC/73), possui capacidade processual, ou seja, capacidade para estar em juízo: "Toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos". Já o artigo 71 do Novo CPC (antigo art. 8º do CPC/73) dispõe que: "O incapaz será representado ou assistido por seus pais, por tutor ou por curador, na forma da lei". Neste mesmo sentido, o artigo 84, §1º da Lei 13.146/2015: "Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei".
No caso, ficou demonstrado que o Sr. Luiz, réu na ação, é senhor de idade (72 anos), portador de doença grave (Alzheimer), que o impossibilita de exercer os seus direitos sem a devida assistência. Tanto que o estado do réu constatado em audiência, foi justamente o argumento utilizado pelo juiz de primeira instância para declarar nula a citação e anular todos os atos processuais até ali praticados. Diante desse quadro, a julgadora ponderou que deveria ter sido nomeado curador especial para acompanhar processo, o que não foi feito, culminando na nulidade de todos os atos processuais.
"Constatando-se no decorrer do processo que uma das partes apresenta dificuldade na compreensão dos seus atos e falta de discernimento quanto aos fatos tratados no processado, inserindo-se na hipótese prevista no artigo 4º, III do CC/02 supra, deve o julgador, com vistas a regularizar a representação processual da parte, nomear curador especial para acompanhar o processo, na forma do artigo 9º do CPC/73 (atualmente disposto no art. 72 do Novo CPC), sob pena de nulidade de todos os atos processuais praticados nos autos, visto se tratar de vício insanável", destacou a desembargadora, em seu voto. É que o inciso I do aludido artigo 9º (atual art. 72) estabelece a obrigação de o juiz nomear curador especial ao incapaz despido de representante legal (curador), o que se amolda perfeitamente ao caso julgado.
Por fim, a desembargadora lembrou que a irregularidade verificada no caso, por defeito de representação de incapaz, configura nulidade absoluta e, sendo assim, pode ser levantada de ofício (independente de pedido da parte) e em qualquer instância. Por tais razões, acolhidas pela Turma revisora, foi reconhecida, de ofício, a nulidade de todos os atos praticados no processo desde a audiência inaugural, determinando-se seu retorno à Vara de origem para que fosse nomeado curador especial ao reclamado, após o quê, o processo deverá prosseguir, como se entender de direito.
00116-2014-102-03-00-7 RO - acórdão em 24/08/2016 Clique AQUI para ler a jurisprudência do TRT-MG sobre nulidade do processo por irregularidade na representação de incapazOutra matéria envolvendo o Mal de Alzheimer na Justiça do Trabalho - VÍDEO produzido pelo TST
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Para se aprofundar sobre o tema, leia AQUI o artigo "O Estatuto da Pessoa com Deficiência e suas repercussões na capacidade civil", de autoria da desembargadora Taísa Maria Macena de Lima, disponível na JusLaboris e na Revista do TRT-MG (Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., Belo Horizonte, v. 60, n. 91, p. 223-234, jan./jun. 2015).