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NJ Especial: Indenizações a vítimas do acidente na barragem do Fundão são pagas na JT de Minas

publicado: 19/06/2018 às 00h05 | modificado: 21/10/2018 às 11h21

Ao ensejo da passagem do Dia Mundial do Meio Ambiente, no último dia 05 de junho, é tempo de lembrar as lições de uma tragédia ambiental, a qual passa também pelos meandros da precariedade da segurança no trabalho em nosso País.

Logo do NJ EspecialO rompimento da barragem de Fundão, em Mariana-MG, em novembro de 2015, foi o maior desastre ambiental da história do Brasil. Foi também a tragédia anunciada dos níveis precários da segurança no trabalho em nosso País. Dezenove pessoas morreram e, no rastro da lama e destruição que desceu leito abaixo pelo Rio Doce, muitos efeitos foram e ainda serão sentidos, com grande impacto na saúde dos cidadãos. A comunidade de Bento Rodrigues foi completamente destruída e aqueles que conseguiram sobreviver ao mar de lama se viram arrancados de suas casas, da convivência com os vizinhos, do seu trabalho, da sua terra, fonte de subsistência. E muitos perderam bem mais que isso: seus entes queridos.

Hoje, mais de dois anos após a tragédia, ainda é preciso refletir sobre as lições deixadas por esse desastre ambiental. Até porque muitas perguntas ainda ecoam no ar: Quais foram, de fato, as causas do acidente? E como ficaram aqueles que perderam tudo? Conseguiram alguma reparação aos seus direitos violados? E o meio ambiente de todo o entorno afetado? Poderá ser recuperado? Enquanto as respostas precisas e derradeiras a todas essas questões ainda são aguardadas, na Justiça do Trabalho de Minas Gerais vítimas diretas e indiretas da tragédia têm conseguido receber indenizações por suas perdas, na verdade, irreparáveis.

Foto cedida pela Prefeitura Municipal de Mariana

Nesta matéria especial, veremos um panorama das ações relativas ao acidente propostas na JT de Minas. E, como um recorte dessa realidade, destacaremos duas situações em que a Justiça do Trabalho mineira agiu para indenizar ou compensar pessoas que, de alguma forma, tiveram suas vidas alteradas pelo desastre de Mariana. Nos dois casos, o leitor poderá observar como essas decisões trabalhistas, em suas entrelinhas, são capazes de nos dar uma ideia mais ampla das consequências de um desastre ambiental dessa dimensão na vida das pessoas e das regiões atingidas. Verá ainda que, no fundo, a tragédia foi também reflexo da falta de um programa abrangente e de uma visão mais ampla de segurança no trabalho, consequência da forma tímida e tacanha como esse assunto tem sido encarado no Brasil.

 

Tragédia deságua na Justiça

 

Veja aqui um levantamento dos processos que envolvem indenizações às famílias das vítimas fatais do acidente na barragem de Fundão e também das ações coletivas.

 

 

Panorama das ações pós acidente contra as mineradoras na JT-MG

 

 

 

 VT DE OURO PRETO

Só na Vara do Trabalho de Ouro Preto foram protocolizadas 160 ações plúrimas (com vários reclamantes) contra a Samarco S.A., propostas pelo Sindicato dos Trabalhadores, muitas delas em segredo de justiça*.

Também tramitam 10 ações individuais movidas por herdeiros de trabalhadores que morreram no acidente, algumas já com acordos entre as partes e indenizações pagas. As sentenças condenatórias já começaram a sair desde junho de 2016. A primeira delas determinou o pagamento de indenizações no total de 1 milhão e 800 mil reais a familiares do trabalhador falecido e, em outra, datada de abril de 2017, foi deferida indenização de 2 milhões de reais, a título de danos morais, materiais e pensão aos herdeiros.

Há ainda 03 Ações Coletivas, isto é, Ações Civis Públicas movidas pelo Ministério Público do Trabalho contra as mineradoras, na defesa de interesses dos empregados destas. (ACP No 0012023-97.2016.503.0069; ACP No 0010436-06.2017.503.0069; ACP No 0012054-83.2017.503.0069).

OUTRAS CIDADES

Outras ações tramitam em Varas Trabalhistas de Belo Horizonte e mais 04 perante a VT de Governador Valadares, cidade também muito afetada pela tragédia, por se situar no Vale do Rio Doce, que foi invadido pela lama.

*Os documentos e decisões de processo em segredo de justiça não ficam visíveis ao público na consulta processual pela internet, sendo restritos às partes.

 

Acordo em ACP - No processo No 0012023-97.2016.5.03.0069, foi celebrado, em 17 de novembro de 2016, um acordo entre a Samarco e o MPT, contando com o parecer favorável dos representantes das categorias profissionais, que manifestaram desejo de que a indenização abrangesse maior número de trabalhadores, inclusive os empregados da ativa. Por esse acordo, a Samarco concordou em manter os postos de trabalho dos 1800 empregados remanescentes, não abrangidos pelo programa de redução de quadro, abstendo-se de promover dispensa coletiva por um prazo e, após este, a negociar com as entidades sindicais antes de efetuar novos desligamentos, visando à preservação de empregos. Foram acertadas também indenizações aos empregados, englobando a indenização adicional ao Plano de Desligamento Voluntário negociado na ação. A Vale S.A. e a BHP Billiton Brasil Ltda. respondem, de forma subsidiária, pelo cumprimento dos termos desse acordo.

Decisões em BH - No último dia 20 de fevereiro de 2018, foi firmada, no Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Disputas de 2º grau, uma conciliação no processo Nº 0011256-59.2016.5.03.0069, envolvendo as mineradoras, a empresa terceirizada e a família de um trabalhador morto no acidente. O acordo previu o pagamento da quantia líquida de R$1.932.210,17, paga de uma só vez, e ainda a manutenção do plano de saúde para os dependentes do falecido.

Em outro processo, também em Belo Horizonte (RTOrd 0011425-54.2015.5.03.0013), as mineradoras foram condenadas pela 13a VT de BH a pagar indenizações de R$ 250.000,00 para cada uma das três dependentes do falecido (viúva e duas filhas) e mais R$ 50.000,00 para o irmão dele, a título de danos morais, além de pensão mensal para as três dependentes.

 

CASO 1

Recorte da tragédia: trabalhador morre soterrado pela lama

Ele tinha 46 anos de idade. No dia 05/11/2015, morreu por asfixia, soterrado pela lama que veio do rompimento da Barragem de Fundão. No momento do acidente, estava lá, trabalhando como motorista, porque era empregado de uma empresa (Integral Engenharia Ltda.) contratada pela Samarco para prestar serviços de engenharia civil pesada no local. Seu salário era de R$1.595,76 que, somado às demais verbas trabalhistas, totalizava cerca de 2.300 reais mensais. Tinha sido designado para trabalhar na obra de manutenção das barragens, para conduzir caminhão de carga pesada. Mas, naquele dia, por volta das 15h30, a barragem de Fundão se rompeu, derramando lama em excesso para a Barragem de Santarém, que transbordou. O veículo que conduzia foi arrastado e soterrado pela avalanche de lama. Com ele, morreram outras 19 pessoas, entre funcionários e moradores da região.

Essa foi uma, entre as dezenas ou centenas de tristes histórias que aconteceram pelo rompimento da barragem em Mariana, de propriedade das empresas “Samarco Mineradora”, “Vale S.A.” e “BHP Billiton S.A.” . E foi narrada numa ação ajuizada na JT mineira pelos familiares (irmãos e sobrinhos) do trabalhador falecido. Além da perda do ente querido, eles disseram que, pouco depois, perderam a avó, que faleceu de desgosto pela morte do filho. “Tudo pela negligência e ambição exagerada das empresas, que não tomaram as medidas de segurança necessárias para evitar o acidente”, disseram. Pediram que as empresas responsáveis fossem condenadas, de forma solidária, a lhes pagar indenização por danos morais, no valor mínimo de 440.000 reais para cada.

Foto: Leonardo Andrade

O caso foi analisado pela juíza da Vara do Trabalho de Ouro Preto, Graça Maria Borges de Freitas. Ela deferiu a indenização por danos morais aos reclamantes, embora em valor bem inferior ao postulado. As indenizações foram concedidas a três sobrinhos do trabalhador, já que os irmãos dele acabaram celebrando acordo com as empresas (de acesso restrito às partes), antes mesmo da sentença. O fato é que a magistrada, em sua decisão, de forma clara, minuciosa e profunda, nos dá uma dimensão da tragédia, de seu impacto no meio ambiente e nas vidas das pessoas das regiões afetadas.

 

A dimensão do desastre – Seu contexto local e internacional

Inicialmente, a juíza fez importantes observações sobre a tragédia: os graves problemas ambientais e sociais que o rompimento das barragens em Mariana trouxe à Bacia do Rio Doce, ao País, ao planeta, como um todo.

Ela ressaltou que o acidente que vitimou o familiar dos reclamantes é considerado o maior desastre ambiental do Brasil e, quiçá, o maior acidente envolvendo empresas de mineração no mundo! Destacou o grande número de atingidos, que envolve comunidades rurais e urbanas, inclusive indígenas, empresas, cidades, proprietários de terra ribeirinhos, ao menos um parque estadual, pescadores, turistas, fauna e flora e todos os que dependiam direta ou indiretamente do Rio Doce para sobreviver ou realizar suas atividades na condição de empresários, autônomos ou empregados, além das pessoas que dependiam do rio para coletar água e realizar atividades de lazer: “O caso examinado não pode ser banalizado!”.

Na sentença, ela esclareceu que uma bacia hidrográfica é um sistema que deve ser examinado de modo complexo, por se tratar de um ecossistema integrado, cujas consequências e propostas de solução precisam ser pensadas, nas palavras da juíza: “de modo holístico”. E alertou: “O número de ações e a complexidade das causas em torno ao rompimento da barragem gerou um enorme impacto no sistema de justiça, o que provavelmente exigirá a busca de soluções inovadoras pelos órgãos do poder judiciário e seus auxiliares para resolver, de modo estrutural e sistêmico, os problemas jurídicos e sociais causados e para compatibilizar os interesses de tantos afetados”.

Foto cedida pela Prefeitura Municipal de Mariana

Citando várias ações judiciais e iniciativas internacionais que deram protagonismo à proteção dos rios, reconhecendo sua importância para o equilíbrio da fauna e da flora e para a sobrevivência de comunidades que vivem no entorno (como as ações relativas ao Rio Vilcabamba, no Equador; o reconhecimento da sacralidade do Rio Whanganui e da sua personalidade jurídica pelo parlamento da Nova Zelândia,  entre outros), a juíza lembrou que o caso das ações envolvendo a recuperação do Rio Doce não é um fato isolado. Principalmente, considerando-se outros desastres recentes com rupturas de barragens, já que apenas na jurisdição da VT de Ouro Preto houve duas outras rupturas com morte de trabalhadores, sendo, uma delas, pertencente à Mineradora Herculano. Nesse ponto, ela registrou que as alegações relativas a caso fortuito, força maior e evento da natureza também estiveram presentes nesse outro caso envolvendo a Mineradora Herculano, o que leva a crer que o modelo de barragens utilizado na mineração do Estado de Minas Gerais precisa ser avaliado pelos órgãos de controle, empresas e afetados.

Entrando no ramo do Direito do Trabalho, a magistrada destacou que a importância do direito à água para proteção ao próprio trabalho (aqui entendido em sentido amplo, proteção ao emprego e à atividade produtiva) também tem sido reconhecida internacionalmente. Recente relatório da ONU sobre água e emprego  demonstra que 78% dos empregos do mundo dependem do acesso à água, o que, aliás, como lembrou a juíza, aplica-se às próprias empresas reclamadas, no caso, já que exercem atividade mineradora. “Portanto, é preciso que se pense sobre a exploração sustentável da água na região, inclusive para evitar que casos como esse, da tragédia de Mariana, se repitam, levando ao comprometimento socioeconômico e ambiental da região e até mesmo à inviabilização da própria atividade de mineração, que necessita de água em diversas etapas da extração do minério e da eliminação dos riscos decorrentes da poeira ambiental, fatos conhecidos de todos”, ponderou a magistrada.

Por fim, a juíza esclareceu que, no recente Fórum Mundial da Água, várias entidades firmaram compromissos de proteção ambiental e das fontes de água, inclusive Juízes e Membros do Ministério Público, que firmaram cartas de compromisso a respeito do tema, com o objetivo de orientar práticas institucionais, com o respeito à independência funcional. “Tudo isso revela a preocupação crescente com o tema e a urgência de suas soluções”, alertou.

 

A tragédia em caso concreto

Ao trazer todos esses dados à sua sentença, a juíza explicou que assim fez para contextualizar os fatos narrados pelos autores da ação, para lhes dar a devida dimensão, apurar a responsabilidade das empresas, avaliar o impacto dos danos e, ainda: “Para sensibilizar a todos os envolvidos para a dimensão que o problema vem ganhando em face da possibilidade de escassez hídrica, alertada pela Agência Nacional de Águas e outros órgãos, em decorrência do uso intensivo de água em algumas atividades econômicas e, ainda, do risco de contaminação das fontes de água potável”.

Na sentença, ela reconhece que o impacto da tragédia, com toda certeza, será muito maior nas esferas de atuação da jurisdição comum, federal ou estadual, ou em processos em que se discutam danos coletivos. "Em relação aos casos trabalhistas individuais, as soluções são de menor complexidade, já que dizem respeito à reparação de danos de natureza pessoal", pontuou.

Além disso, ela ponderou que as soluções desses casos têm sido buscadas e conseguidas pelos envolvidos com protagonismo dos advogados e com intervenção dos sindicatos e do Ministério Público do Trabalho, inclusive, com garantia temporária de emprego aos trabalhadores afetados pela paralisação da empresa. Segundo a julgadora, isso significa que, embora se reconheça o impacto ambiental do acidente em Mariana, isso não pode ser considerado como fator para elevar as indenizações pretendidas no caso, diante da natureza pessoal da indenização e da necessidade de examinar os vínculos de parentesco de forma diferenciada: “As gradações da dor moral (seja pelo grau de parentesco, seja pela existência de dependência econômica ou de responsabilidade legal de prover sustento afetivo ou moral ao afetado) são distintas e devem ser examinadas também de forma particular” arrematou.

 

Segredo de Justiça X interesse público - Documento histórico

Um ponto interessante chamou a atenção na sentença. É que as partes pediram que o processo tramitasse em segredo de justiça. Mas, em relação à parte inicial da sentença, na qual houve a contextualização da tragédia e do acidente que culminou na morte do tio dos reclamantes, a juíza foi firme e categórica ao afastar o segredo de justiça. Isso porque, na visão da magistrada: “esta parte inicial da decisão deve ser difundida, sem a restrição do segredo de justiça, já que indica questões de interesse amplo na solução dos conflitos sobre o tema, cuja solução rápida, dialogada e justa exige esforço de todos e compreensão do problema de forma mais ampla, inclusive pela responsabilidade da geração presente (todos) em entregar o planeta às gerações futuras em igual ou melhor situação que o encontrou”.

Contudo, foi determinado que o acesso ao processo ficasse restrito às partes interessadas, incluído o Ministério Público do Trabalho, e àquelas que justificassem interesse, como as autoridades públicas e investigadoras. De acordo com a juíza, o sigilo, no caso, só se justificava temporariamente, inclusive para não prejudicar investigações. Por outro lado, ela reconheceu o interesse do processo como documento histórico, o qual deverá ser preservado com o Selo Memória do TRT3 e cujo acesso público poderá ser determinado para fins de pesquisa.

 

Mineração: atividade de risco.

Sobre a responsabilidade das empresas envolvidas no caso, a empregadora Integral Engenharia Ltda. – e as proprietárias das barragens de Fundão e Santarém (Samarco Mineradora, Vale S.A. e BHP Billiton S.A.), a magistrada registrou que o dever de indenizar exige a presença dos requisitos do art. 186 combinado com o art. 927 do Código Civil, quais sejam: o dano, o ato ilícito e o nexo de causalidade entre eles.  Acrescentou que se admite a responsabilidade objetiva do empregador ou contratante, aquela que não depende de culpa (parágrafo único do artigo 927), quando a atividade desenvolvida cria riscos para terceiros. “Esse é exatamente o caso”, concluiu a juíza, ressaltando que, tanto a classificação do risco previdenciário das reclamadas, quanto as necessárias medidas de segurança individual e coletiva, revelam que o trabalho na mina era, em si mesmo, “fator de riscos múltiplos”.

Em relação à empregadora, segundo a juíza, ela também exerce atividade de risco, o qual, inclusive, foi agravado quando ela firmou contrato com a Samarco, em atividade mineradora e em área de barragem: “O risco está claro nos laudos apresentados ao processo”, observou na sentença.

Foto cedida pela Prefeitura Municipal de Mariana

Registrou ainda a magistrada que também se aplica ao caso o artigo 932, inciso III, do Código Civil, segundo o qual o empregador deve responder pelos atos de seus empregados ou prepostos. “Isso vale para todas as rés em relação aos atos praticados por seus empregados ou prepostos e que possam ter contribuído para o dano alegado, independentemente da condição da empresa de empregadora ou não do trabalhador falecido”, frisou.

Na sentença, a julgadora fez questão de explicar que a responsabilidade objetiva por danos se aplica no âmbito da Justiça do Trabalho: “O artigo 7º da Constituição brasileira protege o avanço (não retrocesso) caput da proteção laboral e social, ao estabelecer a possibilidade de ampliação dos direitos do trabalhador para "melhoria de sua condição social", o que ocorreu com a ampliação concedida pelo Código Civil. Assim, declaro que se aplica a responsabilidade objetiva ao presente caso”, concluiu.

 

A culpa das empresas

As empresas alegaram várias excludentes de culpa na tragédia que tirou a vida do tio dos reclamantes. Mas, uma a uma, elas foram sendo afastadas pela magistrada.

Primeiro, ela pontuou ser irrelevante o fato de o trabalhador usar EPIs (equipamentos de proteção individual) e ter participado de treinamentos para exercer a função. “A insistência das empresas nesse ponto irrelevante da prova, diante da natureza do acidente, revela o quanto o tema da saúde e segurança no trabalho está distante da cultura de prevenção estrutural dos riscos”- lamentou a julgadora. E completou: “O acidente de Mariana não decorreu de falha de segurança básica no trabalho, sanável com EPIs, mas de falha estrutural da barragem, cuja responsabilidade, conforme declarado pela testemunha da Samarco, sequer era do Setor de Segurança do Trabalho, mas da equipe de geotecnia”

Segundo destacou a juíza, é necessário compreender a diferença entre medidas de proteção coletiva (aquelas que previnem ou evitam os acidentes) e as medidas de proteção individual (aquelas que tentam evitar ou minimizar os danos, se ocorrerem acidentes ou exposição a riscos que não podem ser eliminados). “No caso, ainda que o trabalhador dispusesse de todos os EPIs normalmente fornecidos, estes não seriam capazes de evitar os danos que podem causar o peso e a pressão de uma avalanche de lama das proporções daquela despejada com o rompimento da barragem”, observou.

Nesse cenário, entendeu a magistrada que a análise da culpa das empresas deve se centrar nos procedimentos coletivos de prevenção de acidentes ou de evacuação em caso de acidente previsível e nas falhas de caráter estrutural da barragem.

 

Os fatos

Em seu exame, a magistrada observou que, tanto a prova documental como a prova testemunhal, comprovaram que o trabalhador recebeu treinamento de segurança básico, inclusive em relação a procedimentos de evacuação do local. Mas, conforme constatado, os treinamentos não eram eficazes para um caso de rompimento da barragem, já que os trabalhadores mortos no desastre estavam em locais que os colocavam em total impossibilidade de defesa. Tanto que o próprio preposto da Samarco, em depoimento, confessou que quando o trabalhador foi avisado do rompimento da barragem "não havia tempo suficiente para a fuga”. Nas palavras da julgadora: “A falsa sensação de segurança no local foi, na verdade, falha da empresa que deixou de fazer a manutenção necessária e de reavaliar a estabilidade e o risco da barragem, embora recomendado, como relatado no laudo do Ministério do Trabalho, deixando os trabalhadores do local vulneráveis”.

A magistrada notou, ainda, que o próprio Coordenador de Segurança admitiu que cuidava da segurança operacional, mas que os trabalhadores (inclusive ele próprio) não tinham informação suficiente sobre o risco estrutural do local. Em depoimento, ele afirmou “que foi à barragem um dia antes da tragédia e que não havia nenhum alerta de que pudesse ocorrer algum incidente”.

 

Causas do rompimento e a responsabilidade das empresas

Quanto às causas de rompimento da barragem, a julgadora observou que os laudos oficiais produzidos pela Polícia Civil e pelo Ministério do Trabalho indicaram culpa grave das empresas na ocorrência do acidente. Esses laudos demonstraram que os riscos de barragens construídas a montante, como no caso, são conhecidos, inclusive os problemas de liquefação.

O Ministério do Trabalho listou algumas causas do acidente, destacando que seus fatores podem ser explicados "por decisões técnico-organizacionais tomadas ao longo da história do sistema", especialmente diante das surgências ocorridas em 2013, 2014 e 2015 e as grandes trincas que surgiram em 2014". Na conclusão, o perito listou as seguintes falhas: dispositivos de monitoramento ausentes por supressão e/ou inoperantes; dispositivo de monitoramento inexistente; não cumprimento de programa de manutenção; adiamento de neutralização; eliminação de risco conhecido; falta de critérios para correção de inconformidades; ausência de projeto; falta de manutenção preventiva. Conforme pontuou a magistrada, tais falhas ocasionaram a emissão de 23 autos de infração após o acidente, entre as quais, várias violações da NR-22.

A polícia civil também chegou a conclusões semelhantes e afastou a culpa de evento da natureza, mesmo porque os sismos foram de pequena magnitude. Além disso, como demonstrou o laudo do Ministério do Trabalho, esses abalos sísmicos podem ser induzidos por grandes reservatórios, somente configurando risco, pelos manuais técnicos, quando iguais ou superiores a 5 na escala Richter, não tendo sido este o caso do acidente, o que reforça a conclusão sobre a existência de falha estrutural. Foi constatado, ainda, o depósito de rejeitos pela empresa Vale S.A. na barragem em quantidade superior à declarada, conforme laudo da polícia civil, além de falhas no sistema de monitoramento e a ocorrência de vazão superior à capacidade drenante, sem que as inconsistências dos dados fossem objeto de atenção suficiente das empresas.

Foto cedida pela Prefeitura Municipal de Mariana

“Os laudos detalham as falhas ocorridas e o aumento da produção de rejeitos a partir de 2013, o que coincide com o período em que a Samarco estava sob a administração da Vale e da BHP, tendo sido apurada a saturação de rejeitos em 2014, parte deles da Vale S.A., sem que fossem feitos os ajustes da carta de risco e dada a importância devida aos níveis de emergência ou atenção apontados nos piezômetros, conforme relatórios da empresa VOGBR, também relatados pelo Ministério do Trabalho”, destacou a juíza sentenciante.

Em sua análise, ela concluiu que: “sejam pelas falhas estruturais e de segurança que impediram a prevenção do acidente, sejam pelas falhas dos processos de segurança do trabalho, o fato é que o trabalhador foi exposto ao perigo, sem que fossem tomadas medidas suficientes para reconhecer o risco da atividade e permitir evacuação da área em tempo hábil de salvar-se, pois os planos existentes, como demonstrado, eram insuficientes”. Nesse quadro, a magistrada não teve dúvidas da culpa grave das empresas Samarco, Vale e BHP para a ocorrência do acidente, reconhecendo, ainda, a responsabilidade objetiva (que não depende de culpa) da empregadora do reclamante (Integral Engenharia Ltda.).

 

Grupo econômico: responsabilidade solidária

Por razões de equidade, a juíza determinou que, embora todas as rés sejam responsáveis pela reparação, o patrimônio daquelas que atuaram com culpa e que tinham controle sobre o meio ambiente de trabalho deve ser executado prioritariamente. Somente em caso de ausência ou insuficiência de bens, o patrimônio das demais rés será executado, com solidariedade entre elas. Ela ressaltou que essa responsabilidade solidária engloba a Samarco e as rés que a administravam indiretamente (Vale e BHP, sócias), cabendo a qualquer das três efetuar o pagamento dos créditos reconhecidos na decisão.

Segundo o pontuado na sentença, é de conhecimento geral que a VALE e a BHP são acionistas da Samarco, fato, aliás, comprovado pelos documentos apresentados no processo. Diante disso, frisou a julgadora que, na condição de acionistas principais, são essas empresas que dão a tônica da administração dos negócios, cuja execução é do corpo administrativo da Samarco, mas cujo modelo de gestão, incluídas as decisões estruturais relativas à segurança, a expansão da atividade, custos, etc., são de responsabilidade de quem controla a empresa. “Por isso a determinação de que a ordem de execução do patrimônio, diante da natureza da ação e da apuração de culpa das três empresas, seja baseada em equidade”, explicou a juíza. Contudo, ela ressaltou que, diante da existência do grupo econômico, a responsabilidade das empresas é solidária, “mesmo porque é preciso proteger o credor da fuga de patrimônio com sua transferência entre empresas”, destacou.

 

Danos morais: grau de parentesco x laços afetivos

Chegando ao “ponto X” da ação trabalhista, ou seja, ao direito dos sobrinhos do trabalhador (já que os irmãos firmaram acordo antes da sentença) à indenização por danos morais pretendida, a magistrada alertou para o fato de que eles não eram dependentes do falecido e nem mesmo herdeiros, já que a existência de filhos e esposa, no caso, exclui a preferência dos demais parentes na ordem de sucessão. ´

Entretanto, segundo a juíza, como sobrinhos, eles têm legitimidade para postular indenização por danos morais, em nome próprio, em razão dos laços afetivos que mantinham com o trabalhador.

Além disso, a julgadora ressaltou que as indenizações pretendidas têm amparo no artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, entendendo-se o dano moral como aquele que atinge os direitos da personalidade do ofendido como a honra, a imagem, a intimidade, a vida privada, a liberdade, ou, ainda, que cause sofrimento físico ou psíquico.

Conforme pontuado na sentença, a morte do tio dos reclamantes gera presunção do dano, considerando os sentimentos e a moralidade comuns vigentes na sociedade, a supressão da convivência com o ente familiar, além da possibilidade de suporte moral e da importância dos laços afetivos e da solidariedade familiar entre parentes próximos. A julgadora lembrou que, inclusive, a própria legislação civil pressupõe a existência de vínculo afetivo entre parentes desse grau ao proteger o direito que eles possuem de postular indenização (art. 12, parágrafo único, do Código Civil) e ao declará-los suspeitos para depor em favor do parente de até terceiro grau. Além disso, a magistrada frisou que a condenação é ônus imposto aos causadores do desastre, com o objetivo de reprimir a reiteração da conduta ilícita que, aliás, agrega sofrimento à família, diante da circunstância da perda. Destacou, ainda, que:“Não se pode esquecer a precariedade dos métodos de evacuação da barragem e, posteriormente, a precariedade das técnicas de busca de corpos, aumentando o sofrimento das famílias”.

Tendo em vista os danos morais suportados pelos reclamantes em decorrência da morte do ente querido, a juíza reconheceu que as empresas rés, responsáveis pelo desastre, devem pagar a eles indenização por danos morais.

 

Valor da reparação

Quanto ao valor da reparação, ao fixá-lo, a julgadora levou em conta a intensidade do sofrimento, a gravidade da lesão, o grau de culpa das empresas e o seu grande poder econômico. Entretanto, na visão da magistrada, a indenização não poderia ser concedida no valor pretendido pelos reclamantes (440 mil reais), já que se deve evitar o enriquecimento sem causa. Ela lembrou, contudo, que o valor deve ser suficiente para punir as empresas, coibir a reiteração do ilícito e, ao mesmo tempo, minorar a dor dos familiares do empregado.

Por tudo isso, as empresas foram condenadas a pagar indenização por danos morais no valor de 30 mil reais para cada um dos reclamantes. A condenação das empresas foi solidária, mas com respeito à forma preferencial determinada na sentença.

RTOrd 0010858-78.2017.5.03.0069  Data: 16.04.2018

 

 

CASO 2

JT reverte justa causa de empregada que não chegava ao serviço porque balsa não navegava na lama no Rio Doce

Nessa situação, trazida ao exame do juiz José Barbosa Neto Fonseca Suett, na 4ª Vara do Trabalho de Coronel Fabriciano, os prejuízos causados à trabalhadora em decorrência da tragédia de Mariana foram menos graves. Ela não perdeu nenhum familiar no desastre. Mas acabou perdendo o emprego! Isso porque a balsa que utilizava para chegar ao serviço parou de trafegar, já que era impossível que navegasse sobre a lama que invadiu o Rio Doce com o rompimento das barragens.

A situação retratada, embora menos trágica do que a anterior, também é capaz de nos dar uma dimensão da tragédia, mostrando como o desastre alterou a rotina da vida das pessoas que vivem no Vale do Rio Doce: não foram só as vidas perdidas. Foram milhares de pessoas que sofreram os mais diversos prejuízos, tendo suas vidas transformadas, de alguma forma, pelo desastre.

No caso, a reclamante era empregada de uma empresa que prestava serviços para o Santander e, por isso, desde 20/04/2015, exercia as atividades de “auxiliar de serviços gerais” numa agência do banco localizada na empresa Cenibra, em Belo Oriente. Como residia em Bugre, utilizava a balsa que liga os dois municípios para chegar ao serviço. Entretanto, com o rompimento da barragem em Mariana, a balsa deixou de funcionar por alguns dias, já que era impossível que navegasse sobre a lama que contaminou o Rio Doce.

A empregada, então, não tinha como ir trabalhar. Com as faltas, acabou tendo seu crachá bloqueado pela empregadora, sendo impedida de ter acesso ao local de serviço, até que recebeu uma notificação para comparecer, ou seria dispensada por “abandono de emprego”. Após vários contatos com o gerente na tentativa de resolver o problema, não obtendo sucesso, procurou a JT, pedindo o reconhecimento da sua dispensa sem justa causa, com o pagamento das verbas trabalhistas decorrentes. E teve seu pedido atendido pelo juiz.

Na sentença, o magistrado destacou que, conforme amplamente noticiado na mídia nacional e internacional, o rompimento da barragem em Mariana/MG fez com que uma lama espessa contaminasse o leito do Rio Doce, o mesmo que a reclamante precisava vencer por meio de balsa para trabalhar. E, através de uma reportagem indicada pela reclamante, feita pela Rede Globo, o julgador observou que, de fato, a balsa que atravessava os moradores entre Bugre e Belo Oriente parou de funcionar por alguns dias, o que justificou a ausência da empregada ao trabalho.

Águas do Rio Doce em Galileia, Minas Gerais, Brasil, com a lama da barragem da Samarco, que se rompeu no município de Mariana, em 5 de novembro de 2015.

Conforme constatou o juiz, a reclamante justificou o porquê de não ir trabalhar, enviando à empregadora resposta, por carta registrada, na primeira notificação que recebeu da empresa para retornar ao trabalho. Informou que queria voltar ao serviço e que não conseguia porque seu crachá estava bloqueado. Mas a empresa ignorou a comunicação da empregada. E mais: enviou a ela outra notificação avisando de sua dispensa por “abandono de emprego”. Nesse cenário, o juiz não teve dúvidas: “a empresa tentou se esquivar de suas responsabilidades”.

Nas palavras do julgador: “Estranhamente, a empregadora preferiu o caminho mais custoso de substituir a reclamante em seu antigo emprego, o que presume seleção, contratação e treinamento de novo empregado, a verificar com a própria reclamante a impossibilidade alegada em sua carta de resposta, principalmente, nos dias atuais em que a comunicação não tem sido mais empecilho nas relações interpessoais, quer seja pela tecnologia, telefonia, quer seja pelo acesso viário facilitado.” O magistrado verificou que a empresa, inclusive, tinha um empregado específico para resolver essas situações na região, como reconheceu o preposto em depoimento. Entretanto, não tomou nenhuma providência para resolver a situação da reclamante.

“Passados cerca de seis meses, a reclamada nada fez. Não notificou a reclamante de sua dispensa, não solicitou a sua CTPS para baixa, não informou a reclamante que o problema de seu crachá estava resolvido, enfim, tomou uma postura de total omissão. Postura essa eloquente!”, enfatizou o juiz sentenciante.

Nesse cenário, o magistrado não teve dúvidas de que a reclamante não tinha qualquer intenção de abandonar o emprego. Ao contrário, para ele, o comportamento da empresa revelou a vontade da empregadora de não mais prosseguir com o contrato de trabalho com a reclamante: “Houve manifestação expressa da empregada de que queria continuar trabalhando, mas que não conseguia ter acesso ao local de trabalho. Ciente disso, a empregadora nada fez, o que expressa nitidamente a vontade de romper o contrato de trabalho”, frisou.

Com esses fundamentos, o juiz reconheceu a dispensa sem justa causa da reclamante, em 17/11/2015, condenando a empregadora a lhe pagar as parcelas trabalhistas decorrentes, como aviso prévio indenizado, saldo de salário, 13ª salário, férias proporcionais + 1/3, multa de 40% sobre o FGTS. Na fase de execução, as partes se conciliaram.

PJE - 0010871-27.2016.503.0097 – Sentença em 09/08/2016.

Última foto - Imagem: Eli Kazuyuki Hayasaka / Corpo de Emergência Tenrikyo / CC BY-SA 2.0 

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