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NJ Especial: JT de Minas manda indenizar empregada transgênero impedida de frequentar banheiro na empresa

publicado: 05/03/2018 às 00h04 | modificado: 06/03/2018 às 10h36

Na contramão de decisões recentes do STF e TSE, caso julgado na JT de Minas demonstra tratamento desigual e intolerância em relação a empregados transexuais ou transgêneros.

Em julgamento realizado na última quinta-feira, 1º de março, o Supremo Tribunal Federal reconheceu aos transexuais e transgêneros o direito de alterar os seus nomes no registro civil – de masculino para feminino e vice-versa - sem necessidade de cirurgia para mudança de sexo. Essa decisão histórica foi unânime. E mais: por maioria, ficou decidido que não será necessária autorização judicial para que o transexual solicite a mudança do nome social (prenome) e da especificação do gênero no seu documento. O pedido poderá ser feito diretamente no cartório de registro civil, sem necessidade de se apresentar qualquer prova da mudança de sexo, que poderá ser atestada por uma simples autodeclaração.

Claro. “A identidade de gênero não se prova”. Foi como fundamentou o seu voto o ministro Luís Roberto Barroso, citando resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao que a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, emendou: “Somos iguais, sim, na nossa dignidade, mas temos o direito de ser diferentes em nossa pluralidade e nossa forma de ser”.

Um dia antes, em sessão administrativa, o TSE entendeu que as candidaturas de homens e mulheres transgêneros podem entrar nos percentuais estipulados para as cotas de gênero nas eleições. Ficou estabelecido também que o nome social poderá ser utilizado, tanto nas eleições proporcionais como nas majoritárias.

Assim vai evoluindo e se modernizando a nossa jurisprudência para acompanhar a realidade e atender às exigências do contexto social atual, no encalço de trazer à luz toda a verdadeira dimensão das palavras “liberdade” e “igualdade” que, mais que meros conceitos, são princípios fundamentais plasmados na nossa Constituição Federal.

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Mas o que o leitor vai ver nesta NJ Especial é algo que, infelizmente, ainda acontece em empresas e outros espaços sociais, públicos ou privados, caminhando na contramão dessa evolução legal e jurisprudencial. A decisão do magistrado, no entanto, é exemplar. Acompanhe o caso:

Resumo da ópera

A reclamante era empregada de uma empresa de montagens industriais e estava trabalhando na execução de uma obra em uma siderurgia, em razão de contrato de prestação de serviços celebrado entre as empresas. Mas, por ser transgênero, inclusive com nome social feminino reconhecido judicialmente, sofria constantes humilhações no trabalho, não só de colegas, como também do encarregado. Chegou ao cúmulo de ser impedida de frequentar os banheiros da empresa, seja o masculino ou o feminino, “por “inexistência de sanitário específico.” Ou seja, proibida de usar o banheiro feminino porque não seria mulher, também não podia frequentar o masculino porque “os homens poderiam reclamar”...

Essa a absurda situação com que se deparou o juiz Leonardo Tibo Barbosa Lima, em sua atuação na 1ª Vara do Trabalho de Formiga/MG. Após analisar as provas, o magistrado reconheceu que a trabalhadora foi vítima de discriminação por gênero e de assédio moral. Ele acolheu o pedido de condenação das empresas (a tomadora de serviços de forma subsidiária) a pagar a ela indenização por danos morais no valor de R$15.000,00.

Assédio moral gera dano moral

Em sua análise, o julgador ressaltou que o dano moral é o resultado de uma ameaça ou ofensa a um direito da personalidade (o corpo, nome, imagem, aparência, honra, fama, identidade, privacidade e quaisquer outros atributos físicos, psíquicos e morais do ser humano), sendo garantido à vítima o direito de obter uma reparação do agressor, sem prejuízo de outras penas previstas em lei (art. 5º, V e X, da CF, c/c art. 12, do CC).

Já o assédio moral, conforme esclareceu, consiste em um conjunto de condutas lesivas que, pelo seu conjunto e repetição, tornam-se ilícitas, por gerar terror na vítima: “Não é necessário que o assediador tenha em mente um objetivo específico, mas, geralmente, com sua conduta agressiva, ele busca impedir direitos ou induzir a vítima a agir de uma determinada forma”, registrou na sentença. Conforme acrescentou, o assédio moral gera dano moral, porque fere os direitos da personalidade da vítima, sendo modalidade de abuso de direito, penalizado pela lei civil (art. 187 do CC).

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Conforme pontuou o magistrado, o dano moral não exige prova, porque é interno e subjetivo e, portanto, presumido. “Mas o potencial ofensivo da conduta, ou, o ato ilícito, este sim, deve ser provado, porque apenas quando a conduta é potencialmente ofensiva a um direito da personalidade haverá a presunção de ocorrência de dano moral”, ressaltou. Já a obrigação de compensar, conforme explicou, decorre da responsabilidade civil extracontratual, pressupondo a ocorrência de conduta culposa ilícita ou abusiva, nexo causal e dano (art. 186 e 927 do CCC). Para o magistrado, não houve dúvidas da presença dessas circunstâncias, no caso.

Declaração de gênero deve ser respeitada

Na sentença, o magistrado discorreu sobre o que seriam as “diferenciações de gênero”. Ele esclareceu que, por tradição social, o gênero pode ser masculino ou feminino, mas a sua caracterização é subjetiva: “Além do gênero biológico, que é definido por condições congênitas objetivas do corpo (órgão sexuais), os seres vivos, principalmente os seres humanos, possuem gênero psíquico, o qual é autônomo e não está vinculado aos atributos físicos, tampouco orientações ou preferências sexuais. Ele é subjetivo, porque decorre da autoafirmação da identidade”, destacou.

Continuando sua reflexão, o magistrado pontuou que “para fins jurídicos, ambos os gêneros (biológico e psíquico) compõem a personalidade e devem ser protegidos, havendo (cisgênero) ou não (transgênero) correspondência entre eles”. E explicou que, não havendo correspondência entre o gênero biológico e o psíquico, dá-se a “afirmação do gênero”, feita pela própria pessoa, que deve determinar a maneira pela qual a sociedade deve considerá-la e tratá-la, assim como fez a trabalhadora do processo em questão.

“Essa manifestação consiste, em última análise, em uma declaração de identidade”, enfatizou o juiz na decisão. Conforme destacou: “Declarado o gênero, masculino ou feminino, cabe ao Estado (art. 3º, IV, da CF), à sociedade (Lei 7.437/85) e ao empregador (art. 7º, XXX, da CF, c/c art. 5º da CLT) respeitarem a pessoa, tratando-a de acordo com a identidade manifestada, ou terão de responder civilmente pelos danos causados (art. 12 do CC)”.

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É que, como ponderou o magistrado, para o Direito, é irrelevante a classificação de espécies de gênero (homossexual, heterossexual, transexual, transgênero, transformista, etc), pouco importando, também, a aparência física, a anatomia ou a maneira de se vestir, de se comportar e de se relacionar: “O que importa é saber qual foi a afirmação de gênero feita pela pessoa, a qual nem mesmo precisa ser definitiva”, pontuou o juiz, frisando que o desrespeito à declaração de identidade gera danos morais (art. 5º, V e X, da CF, c/c art. 12 do CC).

Proibida de usar banheiro: desrespeito e discriminação

No caso, conforme observado pelo magistrado, muito embora isso não fosse necessário, para fins de afirmação de identidade, a reclamante chegou, inclusive, a obter autorização judicial para alteração de seu nome, em processo que tramitou na Vara Cível de Arcos-MG. Somando-se a isso, uma testemunha ouvida na audiência da ação trabalhista declarou que a trabalhadora, desde a contratação, já se apresentava fisicamente como sendo do gênero feminino, com cabelo grande e roupas femininas. “Isso demonstra, de maneira inequívoca, que a reclamante se identificou como sendo do gênero feminino”, pontuou o juiz sentenciante. Chamou a atenção do julgador a afirmação da testemunha de que presenciou a empregada pedindo aos colegas e aos superiores que a chamassem pelo nome social: “Essa é a prova de que a parte autora efetivamente se declarou como sendo do gênero feminino, o que, por si só, já é suficiente para exigir de todos respeito e consideração a essa condição da personalidade”, completou.

Diante dessas circunstâncias, na visão do julgador, ficou evidente que cabia à empresa adotar medidas, mínimas que fossem, para garantir o respeito à identidade da empregada, o que não foi feito. “Pelo contrário, o desrespeito à identidade da reclamante foi tão grande que chegou ao nível da proibição de usar banheiros e da prática de assédio moral, por meio de brincadeiras destinadas a diminuir e agredir a sua personalidade”, registrou o juiz na sentença.

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Segundo explicou, tendo a reclamante se identificado como sendo do gênero feminino, cabia à empresa tratá-la como tal, para qualquer finalidade, inclusive quanto ao uso do banheiro. “Entretanto, a empresa sequer se deu ao trabalho de, em respeito ao nome social, alterar o nome da reclamante no crachá, a fim de evitar o assédio moral, conduta que independe de determinação judicial, por se tratar de regra moral e de educação”, destacou o julgador.

Ele lembrou na sentença que sequer uma reunião foi realizada pelas empresas – nem pela empregadora e nem pela tomadora de serviços - para orientar os empregados a respeitarem as diferenças entre eles, especialmente em relação à condição da trabalhadora transgênero. Ao contrário, a orientação era para chamá-la pelo nome que constava no documento e no crachá da empresa. E o que o julgador considerou mais grave é que o próprio superior dela, que deveria dar o exemplo de respeito, passou a ser referência da prática de assédio e humilhações à empregada, que já foi vista chorando ao ser chamada por termos pejorativos, como “veado” e alvejada com brincadeiras de mau gosto, como as que a mandavam mostrar as nádegas.

“A privação do uso de banheiro que, por si só, já é agressiva e desumana, independentemente do gênero da pessoa, ficou ainda pior, no caso, porque foi flagrantemente fundamentada em preconceito, estigma, discriminação e assédio moral”, registrou na decisão.

A condenação por assédio moral

Como explicou o magistrado, a continuidade da prática ilícita e lesiva dirigidas contra a reclamante em seu trabalho potencializou os efeitos negativos em sua honra, a qual é um atributo da personalidade, tornando evidente o abuso de direito, equiparado ao ato ilícito (art. 187 do CC). “Salta aos olhos o assédio moral”, ressaltou o juiz, lembrando que o empregador responde objetivamente pelos atos de seus prepostos (art. 932, III, do CC).

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A conclusão, portanto, foi que a empregadora, Tecnomont Montagens Industriais Ltda., agiu com culpa grave, de forma a causar dano moral à sua empregada, pois sequer admitiu a alteração do nome social da empregada no crachá para evitar o assédio moral. E, para o julgador, a empresa tomadora dos serviços (Companhia Siderúrgica Nacional) também foi culpada, considerando que os fatos ocorreram em seu estabelecimento, sem que ela tomasse qualquer providência para impedi-los. Por tudo isso, a sentença acolheu o pedido da reclamante de indenização por danos morais.

Valor da indenização: parâmetros dosados e somados

Para fixar o valor da indenização, o julgador considerou que a compensação deve ser integral e é medida pela extensão dos danos (art. 944 do CC). Entretanto, no caso do dano moral, “a dosimetria deve ser feita pela razoabilidade (art. 8º, da CLT), com o máximo de objetividade possível, tendo em vista o caráter reparatório (perspectiva da vítima), preventivo (perspectiva da sociedade) e pedagógico (perspectiva do ofensor)”, ponderou.

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No caso, para o julgador, o valor básico de R$ 5.189,82 (Portaria Interministerial nº 01/2016), que corresponde ao teto da previdência social, atende ao critério reparatório, já que, por presunção, satisfaz as necessidades básicas dos filiados ao RGPS (Regime Geral de Previdência Social). Mas, tal valor foi reduzido pelo juiz em 50%, por entender que a conduta ilícita da empresa não gerou sequelas à reclamante, tampouco repercutiu fora do ambiente do trabalho. Como medida preventiva, ou seja, para evitar a reincidência, foi aplicado, ainda, o adicional de 100%, em analogia ao art. 351, da CLT. Finalmente, para atender ao caráter pedagógico, o infrator foi onerado na medida de sua culpa (grave) e de sua capacidade econômica (grande), aplicando-se o ágio de R$9.800,00, ficando ressaltado que a conduta foi discriminatória, de assédio moral e de privação do uso do banheiro. Por tudo isso, arredondando o valor, a compensação por danos morais foi fixada em R$15.000,00.

Posteriormente, as partes celebraram acordo, referente a essa e a outras parcelas componentes da condenação, pondo fim ao processo.

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10 de Mar de 2017 - NJ Especial - Sexismo no trabalho: profissionais ainda enfrentam discriminação de gênero.

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