NJ Especial Trabalho da Mulher – Proteção à intimidade: mulheres não podem ser submetidas a revistas íntimas
Veja, nesta terceira matéria da série Especial Trabalho da Mulher, os cuidados que o empregador deve ter, caso adote a prática de revistar seus empregados, já que, por lei, as empregadas mulheres não podem sofrer revistas íntimas. A intenção do legislador foi proteger a intimidade e privacidade da mulher.
Os pontos polêmicos e o que diz a lei
O artigo 373-A da CLT proíbe que o empregador ou seus prepostos submetam as empregadas a revistas íntimas. A regra, que sempre despertou polêmicas quando confrontada com o princípio constitucional da igualdade (por fazer menção apenas ao gênero feminino), foi reforçada pela Lei 13.271, de 18 de abril de 2016, que dispõe em seu artigo 1º: “as empresas privadas, os órgãos e entidades da administração pública, direta e indireta, ficam proibidos de adotar qualquer prática de revista íntima de suas funcionárias e de clientes do sexo feminino". A lei ainda determina que o descumprimento da norma acarreta ao infrator uma multa de R$ 20.000,00 (aplicável em dobro em caso de reincidência), a ser revertida aos órgãos de proteção dos direitos da mulher.
Mas, ainda assim, a proibição quanto às revistas íntimas das empregadas mulheres segue gerando controvérsias. Além da discussão sobre se a regra ofenderia ou não o legítimo direito do empregador de defender seu patrimônio (garantido pelo artigo 5º, inciso XXII), há quem defenda que ela deveria ser estendida aos homens, já que eles também têm a intimidade e privacidade invadidas quando submetidos a revistas íntimas abusivas, tratando-se de direitos (privacidade e intimidade) de toda pessoa humana, também protegidos pelo artigo 5º, inciso X, da Constituição.
O fato é que, independentemente de ser homem ou mulher, ninguém gosta de ter seus pertences revistados e muito menos se despir para passar por revista íntima. O grande problema, de acordo com os profissionais que atuam na área, está em conciliar o legítimo direito do empregador na defesa do seu patrimônio com o indispensável respeito à dignidade do trabalhador.
Revista íntima e revista pessoal - Conceitos e distinção
A revista íntima no trabalho se dá quando o exame sobre o corpo do empregado é realizado pelo empregador ou seus prepostos. Portanto, a revista íntima ocorre, não só quando o empregado é obrigado pelo empregador a se despir, mas também quando ele é submetido a qualquer ato de molestamento físico pelo empregador, que exponha seu corpo.
Já a revista pessoal é feita em objetos, bolsas e pertences dos empregados. A maioria da doutrina e jurisprudência considera ilegal a revista íntima e aceita a revista pessoal, desde que realizada sem excessos, de forma a não expor o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras. O que se observa da doutrina e jurisprudência é que casos de abuso praticados nesses procedimentos de revista geram danos morais ao empregado.
Afinal, a proibição da revista íntima é extensiva aos homens?
A interpretação que os julgadores e estudiosos vêm conferindo ao artigo 373-A da CLT é de que a proibição das revistas íntimas se estende aos homens sim, já que a Constituição Federal de 1988 não distingue homens e mulheres, não havendo, nesse aspecto, qualquer justificativa razoável para que eles estejam excluídos da regra. Assim, mesmo que a lei tenha mencionado a proteção apenas à mulher, prevalece no meio jurídico o entendimento de que deve-se fazer uma interpretação extensiva da norma legal, com fundamento no princípio da igualdade assegurado pela Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, dispõe o Enunciado 15, segunda parte, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho (em 23/11/2007):
“REVISTA ÍNTIMA – VEDAÇÃO A AMBOS OS SEXOS. A norma do art. 373-A, inc. VI, da CLT, que veda revistas íntimas nas empregadas, também se aplica aos homens em face da igualdade entre os sexos inscrita no art. 5º, inc. I, da Constituição da República”.
Com os avanços tecnológicos, atualmente, as empresas dispõem de vários meios para proteger seu patrimônio (como os detectores de metal, aparelhos de raio X, câmeras, etc), o que praticamente elimina a necessidade de se recorrer à revista de empregados. O que se recomenda é que, se for possível evitar a revista, mesmo a pessoal, usando a tecnologia, deve ser priorizado o método alternativo. A revista sempre deverá ser a última opção e a investigação sobre a legalidade, ou não, do procedimento apenas será possível com o exame das circunstâncias particulares de cada caso.
Confiram, abaixo, duas decisões da Justiça do Trabalho mineira envolvendo o assunto:
Caso 1 – Investigação abusiva e invasão de privacidade
Em decisão de julho de 2014, a 1ª Turma do TRT-MG julgou desfavoravelmente o recurso da uma conhecida rede varejista atuante no mercado mineiro, para manter a sentença que a condenou a pagar indenização por danos morais a uma empregada submetida a revista íntima na loja em que trabalhava. A empregada também recorreu da decisão de primeiro grau, pretendendo a elevação da indenização fixada, o que foi acolhido pela Turma. Os julgadores decidiram aumentar a indenização por danos morais a ser paga pela empresa à reclamante, de R$3.500,00 para R$10.000,00.
Na decisão, de relatoria do desembargador Luiz Otávio Linhares Renault, registrou-se que o artigo 373-A da CLT, em seu inciso VI, proíbe que o empregador ou seus prepostos realizem revistas íntimas nas empregadas. E, no caso, segundo o relator, cujo voto foi acompanhado pela Turma, a prova testemunhal demonstrou que a empresa exacerbou o limite do poder de fiscalização, invadindo, “de forma contundente”, o direito à privacidade e intimidade da empregada. Isso porque uma testemunha que trabalhava junto com a reclamante confirmou que, após ocorrer o furto de um celular na loja, todos os empregados, inclusive a própria testemunha e a reclamante, foram revistados na empresa, os homens pelo gerente e as mulheres por uma vendedora, quando “tiveram que retirar a parte de cima da roupa e a debaixo foi apalpada”, disse claramente a testemunha.
No voto, o relator, com riqueza de fundamentos, sensibilidade e sabedoria, ressaltou que “as partes íntimas são como que uma exteriorização da alma da mulher”. Citando Voltaire, Novalis e Rubem Braga, o desembargador trouxe esclarecimentos bastante instigantes sobre o tema. Vale conferir, na íntegra, a antológica ementa:
“EMENTA: REVISTA ÍNTIMA - PODER DE FISCALIZAÇÃO VERSUS DIREITO À PRIVACIDADE - SISTEMA DE PESOS E CONTRAPESOS - AS PARTES ÍNTIMAS SÃO COMO QUE UMA EXTERIORIZAÇÃO DA ALMA DA MULHER - CONFIGURAÇÃO DA IMPUTABILIDADE MORAL-TRABALHISTA - Historicamente, a mulher sofreu e ainda sofre discriminação no trabalho, embora na atualidade em menor grau. A empresa detém o poder de fiscalização, visando à proteção do seu patrimônio, mas deve exercê-lo com prudência e com equilíbrio, de modo a não violar o direito à privacidade da trabalhadora. Dizia Voltaire que "un droit porté trop loin devient une injustice" (Direito levado longe demais torna-se uma injustiça). Mesmo que a revista em uma mulher seja realizada por outra mulher, essa circunstância, só por si, não assegura a licitude do ato consistente na revista pessoal, que, apesar disso, pode se constituir na prática de ato ilícito, tipificado no art. 186, do CC, transgressor do direito à privacidade. Os direitos da personalidade tutelam a dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Constituição Federal, abrangida a proteção à integridade moral, que alcança a imagem, o segredo, a boa fama, a honra, a intimidade, a opção sexual, a privacidade, bem como a liberdade civil, política e religiosa. O conceito de privacidade é mais amplo que o de intimidade. Esta se refere às relações subjetivas puras, de trato íntimo, como as travadas com familiares e com amigos. Aquela, por sua vez, protege a pessoa humana dos atos invasivos, hostis e agressivos ao seu patrimônio moral e pessoal, seja no âmbito das relações comerciais, sociais ou trabalhistas. Em outras palavras, a privacidade estabelece um núcleo de proteção, de centralidade além do qual ninguém pode ir sem a permissão hígida, livre e consentida da pessoa. Dentro deste núcleo, cercado de valores éticos, morais e até religiosos, situam-se bens materiais e imateriais das mais diversas naturezas: corpo, sentimentos, pensamentos, desejos, fraquezas, medos, paixões, e toda sorte de emoções. No fundo e em última análise, a proteção legal é transferida para onde quer que tais bens/valores se encontrem, sob a ótica física, metafísica e até metafórica, tais como a residência, os armários, as gavetas, a bolsa, a mochila, o escaninho, o pendrive, o i-cloud, e tantos outros esconderijos que a vida vai criando para todos nós. Disse Novalis que "só há um templo no mundo e é o corpo humano. Nada é mais sagrado que esta forma sublime. Toca-se o céu quando se toca o corpo humano". Por essa e por tantas outras razões, a privacidade, inclusive a corporal, é reconhecida como um direito humano, estatuindo o art. XII, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), que: "Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques." De igual forma, o direito à privacidade constitui direito fundamental, tutelado pelo art. 5º, V e X, da Constituição Federal, aplicável nas relações privadas, vale dizer, entre particulares, porque os direitos fundamentais têm também eficácia horizontal, ou como diria Rubem Braga porque constituem "o sussurro das estrelas, no fundo da noite". Ao celebrar o contrato de trabalho, a pessoa física, homem ou mulher, não abdica dessa proteção jurídica, porque o seu corpo, a sua privacidade não é uma coisa ou mercadoria, decorrendo, ao revés, “sous la peau et interiéurment”, da própria natureza e condição humana (art. I, "a", da Declaração da Filadélfia, de 1944). Ainda que o patrimônio da empresa esteja sob alegado risco e necessite de proteção, é preciso levar em conta que, no Estado Democrático de Direito, existe a presunção de inocência em favor de eventuais suspeitos (art. 5º, LVII, da Constituição Federal) e existe o monopólio estatal do poder de polícia (art. 21, XIV, da Constituição Federal), pelo que o poder de fiscalização, genericamente exercido sem uma suspeita concreta, deve ser exercido com moderação e equilíbrio, com respeito ao empregados e às empregadas, sem se retirar a parte de cima da roupa e sem que a parte debaixo da roupa seja apalpada. No caso dos autos, a prova oral demonstrou que a empresa exacerbou o poder de fiscalização, invadindo, de forma contundente, o direito à privacidade, que se situa na esfera subjetiva/objetiva da pessoa humana, por isso que o dano moral ocorre “in re ipsa”, presumido pelo que ordinariamente demonstram as máximas da experiência (art. 334, IV, do CPC). O nexo causal e a culpa estão presentes, eis que a revista foi ordenada e realizada por prepostos da empresa, desvelada, em sua inteireza, a responsabilidade moral-trabalhista”. (Processo: 0000852-23.2012.5.03.0025-RO - Data de Publicação: 11/07/2014).
Caso 2 – Revista de bolsa à vista do público é abusiva
Em outra situação, a Quarta Turma do TRT-MG manteve a sentença que condenou uma empresa atacadista a pagar indenização por danos morais de R$3.000,00 a uma empregada que tinha seus pertences revistados na frente dos colegas de trabalho e dos clientes da loja em que trabalhava. Para o relator, João Bosco de Barcelos Coura, cujo entendimento foi acolhido pela Turma, a empresa realizava as revistas de forma abusiva e em desrespeito à dignidade da trabalhadora, estando, por isso, obrigada a reparar os danos morais que causou à empregada.
Em seu voto, o relator ressaltou que, em que pese o poder diretivo do empregador incluir o controle e a fiscalização para a guarda de seu patrimônio, os direitos da personalidade também devem ser protegidos no ambiente de trabalho. Por isso, não se pode admitir que a ação do empregador gere ofensa à dignidade, à honra e à imagem do trabalhador. Segundo destacou o julgador, “a revista deve se pautar pela razoabilidade, com respeito à dignidade do empregado, sem submetê-lo a situações vexatórias ou nitidamente constrangedoras”.
E, no caso, ao examinar a prova testemunhal, o desembargador constatou que a empresa agiu com abuso de poder, já que a revista dos empregados em sua loja era feita por fiscal de outro sexo, com a retirada e exposição pública dos objetos pessoais dos empregados, em ambiente aberto (próximo aos caixas), sendo presenciada pelos colegas de trabalho e também pelos clientes. Ou seja, não havia a necessária discrição e preservação da intimidade da trabalhadora. “A empregada era exposta à vexatória situação de ser revistada na frente de colegas e clientes, em local inapropriado e de ampla visibilidade, com comprometimento da sua dignidade e intimidade”, arrematou o relator, negando provimento ao recurso da empresa. (PJe-0011384-22.2015.5.03.0067 RO - acórdão em 21/03/2017).
Caso 3 - Revista íntima em homens é considerada abusiva
No caso julgado pela 4ª Turma do TRT de Minas, os julgadores se depararam com uma situação diferente: um empregado pretendia receber indenização por danos morais da empregadora em razão das revistas íntimas às quais estava submetido no local de trabalho. A sentença reconheceu o pedido do trabalhador e, acolhendo o voto da desembargadora Maria Lúcia Cardoso de Magalhães, a Turma confirmou a decisão.
De acordo com a relatora, a prova testemunhal comprovou que a empresa adotava a prática da revista íntima dos empregados, com contato corporal. O procedimento foi detalhadamente descrito por uma testemunha. Ela contou que, ao final da jornada todos passavam por uma catraca e, se fosse acionada uma luz vermelha ou se o vigilante não fosse com a cara do trabalhador, este era conduzido para uma sala tipo corredor, com uma porta para entrar e outra, ao final, pra sair. Os pertences e mochilas eram deixados sobre uma mesa para serem revistados. Em seguida ocorria a revista corporal, com toques inclusive nas partes íntimas dos empregados. A testemunha acrescentou que a revista corporal era feita na presença de todos os outros empregados que haviam sido selecionados, causando constrangimento.
Diante disso, a desembargadora não teve dúvidas de que a empresa agiu com abuso, em violação à intimidade, vida privada e dignidade do reclamante, direitos protegidos no artigo 5º, X, da CR. Ela ponderou que o inciso III do artigo 1º da Constituição assegura a preservação da dignidade da pessoa humana, proibindo, nas palavras da julgadora, a “excessiva instrumentalização dos trabalhadores”, o que não é respeitado quando o empregador realiza revistas com contato corporal nos empregados, como ocorreu no caso, principalmente diante da possibilidade de se utilizarem outros meios de controle tecnológicos (como detector de metais ou mesmo raio-x).
Além disso, a relatora ressaltou que o artigo 373-A, inciso VI, da CLT, ao proibir a realização de revistas íntimas pelo empregador e seus prepostos, apesar mencionar apenas as empregadas, alcança, certamente, todos os trabalhadores, incluindo os empregados do sexo masculino: “O art. 373-A da CLT somente explicitou a proteção à mulher sem autorizar a prática em trabalhadores do sexo masculino”, explicou a desembargadora.
Nesse quadro, por entender que foram atendidos os requisitos dos artigos 186 e 927 do Código Civil, a relatora manteve a condenação da empresa de pagar ao empregado a indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00, confirmando a sentença recorrida e negando provimento ao recurso da ré, no que foi acompanhada pelos demais julgadores da Turma. (PJe nº 0011223-04.2016.5.03.0026-ROPS – acórdão em 09/11/2016).
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