Min. Barroso: O futuro da JT - o que melhora e o que piora no ambiente pós-reforma
Mesmo em meio ao que chamou de “uma crise de múltiplas dimensões - moral, humana, social e política”, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, se diz otimista. Até porque, segundo ponderou, “o pessimismo não funciona, não resolve nada”.
E foi com esse ânimo que ele se dispôs a olhar os termos da reforma trabalhista recém-aprovada e prestes a entrar em vigor. Ele acredita que estamos num momento em que se abrem novas perspectivas de mudanças positivas na ética, na politica e na economia. E não podemos deixar de comemorar os 30 anos de estabilidade econômica, com crescimento e avanços sociais importantes. Mas também é o momento de se pensar em formas de se criar um país melhor, com as reformas sociais e econômicas necessárias. “E essa pauta ainda é melhor que a que tínhamos há 20 anos, quando discutíamos como sair da ditadura militar”, lembra.
Para Barroso, é preciso reconhecer que, no Brasil, nunca superamos o preconceito e a desconfiança em relação à iniciativa privada. A explicação para isso é a opção que se fez aqui pelo capitalismo de Estado, com o domínio do setor produtivo pelas estatais. E foi o regime militar quem fez a opção pela estatização, criando mais de 300 empresas estatais. Criou-se, então, uma cultura em que o Estado tinha um papel decisivo. Mas, na relação com o setor privado, esse capitalismo estatal era gestor de uma política de favorecimentos, superfaturamentos etc. “Por isso o espaço privado no Brasil sempre foi visto com desconfiança”, analisa.
Com isso, nos dizeres do mestre Barroso, criamos uma sociedade viciada em Estado, em financiamento público, em paternalismo. “E é muito difícil mudar essa cultura de dependência”, expressou, acrescentando que, no debate sobre a reforma, é preciso reconhecer que ainda trazemos esse preconceito.
De toda forma, a História do mundo já mostrou que o modelo de economia descentralizada e desestatizada funciona melhor. Na visão do palestrante, o Estado é pouco eficiente e incapaz de atender às demandas da sociedade atual. E, ainda por cima, se deixa contaminar pela corrupção. “Os estados da federação estão insolventes e tomando empréstimos para pagar salários dos seus servidores! Não consigo imaginar nada mais trágico que isso”, espanta-se o ministro. E ele conclui que temos de diminuir um Estado tão gigantesco e que toma decisões erradas. “Essa é a premissa da qual temos de partir para conseguirmos qualquer avanço. Temos de criar uma sociedade menos dependente do Estado”.
Esclarece o constitucionalista que a CF/88 estabelece um modelo de Estado que devemos perseguir. E ele se assenta no tripé: democracia, livre iniciativa e justiça social. “Um fato interessante que se deu na História recente do Brasil foi a constitucionalização de alguns ramos do direito e, marcadamente, o Direito do Trabalho”. Isso aconteceu, segundo explica, no final do Séc. XX, com a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, antes dominado pelos códigos específicos de cada área. “Agora, a leitura de todo o sistema jurídico deve se dar à luz da Constituição, buscando realizar os valores nela inscritos, como a dignidade da pessoa humana, a livre iniciativa e o valor social do trabalho, em qualquer ramo do direito infraconstitucional”, esclarece o professor.
Entretanto, sobreveio disso uma consequência indesejável: a judicialização exagerada da vida em geral e da vida no Direito do Trabalho. Tudo se discute judicialmente e qualquer coisa pode chegar ao Supremo. Temos hoje, segundo informa o palestrante, de 70 a 100 milhões de ações em trâmite no Brasil. Grande parte delas tem o próprio poder público como autor, sobretudo o INSS. Mas, mesmo assim, o cidadão moderno demanda muito. Judicializaram-se questões sociais, éticas, econômicas, médicas e até íntimas, como casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto, limites na educação de filhos etc. O ministro cita até o curioso caso em que o tribunal teve de decidir se o colarinho faz parte do chopp para efeitos de medição pelo Inmetro. “Ou seja, judicializou-se absolutamente tudo, do sublime ao ridículo, do importante ao insignificante, até porque o que é insignificante para uns é importante para outros”, pondera o jurista.
Ele cita duas questões trabalhistas que chegaram ao STF como Mandados de Injunção: uma greve de servidores públicos, caso em que o Supremo, diante da inércia do Congresso, mandou aplicar as regras da iniciativa privada. O outro caso foi de indenização por demissão imotivada que, á falta da lei complementar determinada pela CF/88, o STF decidiu que iria, ele próprio, regulamentar a questão. A consequência foi que, a lei que nunca vinha, acabou sendo aprontada e aprovada às pressas no Congresso, pelo temor de que uma regulamentação mais protetiva viesse do Supremo.
Assim, com essa constitucionalização da vida e do direito, “não dá mais pra sair de casa sem uma constituição debaixo do braço”, aconselha o ministro, mas adverte também que, às vezes, essa judicialização intensa pode ser despropositada.
Ele cita estatística segundo a qual foram ajuizadas, na Justiça do Trabalho, quatro milhões de novos processos em 2015! “Isso é espantoso se comparado a qualquer país do mundo”, frisa, citando dados do mesmo ano na França (75 mil ações) e nos Estados Unidos (200 mil ações). “Esse dado, por si só, já exige uma reflexão. É preciso entender quais razões estão por trás desse montante gigantesco de processos”.
Entre as conjecturas que levanta em busca de uma explicação está o fato de que grande parte dos empregadores deve mesmo estar descumprindo a legislação trabalhista. Mas o ministro acredita que deve haver outras causas possíveis, igualmente relevantes, para explicar o fenômeno. Ele cita o caso do presidente de um grande banco que, mesmo sinceramente empenhado em cumprir a legislação, não conseguiu reduzir o número de ações que se avolumavam contra a instituição financeira. “É preciso pensar porque, mesmo quem quer cumprir a lei, não consegue se livrar da litigiosidade”, questiona. E lembra a anedota que circula no meio empresarial, de que, no Brasil, só se fica sabendo o custo da relação de trabalho depois que ela termina.
De acordo com o ministro, a consequência terrível que advém disso é que os empregadores acabam deixando tudo para resolver na Justiça. “Até porque é barato demais litigar no Brasil”, completa. Segundo ponderou, é preciso pensar nessa equação do custo do processo x custo social da Justiça. “Não para encarecer ou para esvaziar a Justiça. Mas o fato é que, se chegar ao Supremo não custa quase nada, todo mundo quer chegar lá, até para fins de postergação dos efeitos da condenação”, afirma, ressaltando que o custo do processo não pode ser menor que o custo social e o custo administrativo dele. “É preciso pesar o custo individual e o custo social. Temos que pensar que o Estado não pode ser o provedor de tudo. Isso é caro e o Estado não pode bancar sozinho.”, adverte o jurista.
Já partindo para a parte final de sua fala, o ministro relatou como algumas decisões do STF repercutiram decisivamente sobre a reforma trabalhista. Uma delas foi a decisão do Recurso Extraordinário que tratou do plano de demissão voluntária do Banco do Estado de Santa Catarina. O caso é o seguinte: os sindicatos haviam negociado um plano de demissão voluntária. Uma funcionaria adere e recebe 78 meses de salário, dando quitação geral pelo extinto contrato de trabalho. Dias depois, ingressa com ação dizendo que havia verbas a receber. A questão era: ela poderia ingressar em juízo após ter dado quitação plena? O TST decidiu em sentido afirmativo e deu prosseguimento à reclamação trabalhista. Mas o caso chegou ao STF que decidiu pela validade da quitação ampla em plano de demissão voluntária negociado pelo sindicato, com adesão consciente e voluntária (sem coação). Ou seja, o STF assentou a premissa de que aquilo que foi legitimamente negociado em acordo coletivo vale, mesmo sobre o que a CLT prevê. “Foi uma mudança emblemática na jurisprudência e isso repercutiu na reforma”.
O que está por trás da decisão, segundo esclareceu o ministro, é que a superproteção que se aplica no acordo individual não vale para a negociação coletiva, onde tem dois sindicatos, um de cada lado, defendendo os interesses do conjunto de trabalhadores da categoria. “E é essa a tese que está na espinha dorsal da reforma trabalhista”, revela.
O palestrante cita ainda outro caso, considerado inspirador da reforma, relatado pelo saudoso Ministro Teori Zavascki, em que ele decidiu pela validade da cláusula coletiva que suprimiu horas in itinere em troca de outras vantagens para os trabalhadores. Ele comenta ainda a Súmula 277 do TST, que trata da ultratividade das normas coletivas, estabelecendo que as cláusulas normativas dos acordos e convenções coletivas passam a integrar os contratos de trabalho em vigor, só podendo ser alterados por nova negociação. Conforme observou, isso não mais acontecerá, pois as normas só valerão pelo período de validade do instrumento negociado. Depois disso, será necessária nova negociação entre os atores da relação trabalhista.
Diante desse quadro, o ministro conclui que a lógica adotada pela reforma foi a de que o excesso de proteção, muitas vezes, desprotege. E, conforme aponta, há estudos que procuram demonstrar isso, sendo consequências colaterais o desemprego e a informalidade. Ele cita, como exemplo paralelo, a antiga lei de locação que superprotegia os locatários e acabou por provocar uma quantidade imensa de retomadas fraudulentas dos imóveis, como se fosse para uso próprio, além da diminuição da oferta e do aumento do preço dos aluguéis. Daí veio a nova legislação e estabeleceu que, ao final do prazo determinado, pode-se retomar o imóvel. A consequência prática foi imediata: aumento da oferta de aluguéis e queda do preço das locações. “Isso é um exemplo documentado de que existe um nível ótimo de proteção, a partir do qual prejudica-se o protegido. É o nosso papel identificar qual é esse ponto de equilíbrio”.
O ministro Barroso finaliza dizendo que a Justiça do Trabalho, sem dúvida, presta um papel relevantíssimo para o Brasil que, infelizmente, ainda tem aquele ranço escravagista que gera a tendência de alguns de tratar de forma inferiorizada, explorar e até maltratar o trabalhador. Mas é preciso quebrar paradigmas para avançar e modernizar. “A lógica de que o empregado tem sempre razão também estimula o comportamento incorreto e não podemos acobertar o incorreto, nem por um lado e nem por outro. Ninguém é bom demais e ninguém é bom sozinho. Temos de estar do lado do correto. Para construir o novo Brasil, precisamos dos bons, e não dos espertos”, arremata.