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Painel: O princípio protetor em xeque - Marlos Melek e Rodrigo Carelli

publicado: 17/08/2017 às 00h15 | modificado: 17/08/2017 às 01h07

Considerado a espinha dorsal do Direito do Trabalho, o princípio da proteção ao hipossuficiente foi o maior dos alvos da reforma trabalhista. Não foi por menos que o painel sobre o tema acabou resultando numa espinhosa exposição de ideias e posições opostas dos dois palestrantes,“esquentando” os debates na tarde de seminário.

Palestra 1 : Marlos Melek

Para falar sobre o controvertido tema, foi convidado ninguém menos que um dos pais da reforma trabalhista: ozMarlosMelek.JPG Juiz do Trabalho da 9ª Região, Marlos Melek, que foi membro do comitê da reforma trabalhista no Congresso Nacional. E ele já iniciou sua fala com uma provocação: “Todos os livros de Direito do Trabalho falam da dignidade da pessoa humana, referindo-se apenas ao trabalhador. Como se o empregador não tivesse dignidade...”

Ele lembra que 70% das empresas brasileiras têm menos de 15 empregados. Ou seja, são micro ou pequenos empresários que lutam como leões contra o monstro da burocracia e contra uma legislação hostil, para manter o seu empreendimento e os empregos que geram. A reforma, de acordo com Melek, é fruto de um sistema que não funcionou. “Porque se funcionasse não precisava mudar”, frisou, esclarecendo que o microempresário, na antiga legislação, era tratado da mesma forma que a Petrobrás; a padaria da esquina da mesma forma que o Banco Itaú. Mas, logo emendou: “O Estado brasileiro trata com hostilidade qualquer empreendedor - pequeno, médio ou grande. Para se ter um caminhão de carga é preciso dezenas de licenças, taxas, tributos, pagar direitos trabalhistas, civis etc.” E, na visão do palestrante, o Direito do Trabalho é apenas a ponta do iceberg dessa hostilidade

“Eu fui da comissão da reforma e não seria pelas minhas mãos que o trabalhador brasileiro teria um direito a menos”, exclamou o juiz trabalhista. E disparou: “Essa reforma não tem lado. Ela é boa para o Brasil. É um dos instrumentos mais avançados do mundo em matéria trabalhista”, comemora, lembrando que a CLT ainda regula o serviço do datilógrafo, enquanto hoje bebês já deslizam o dedo no celular para abrir aplicativos.

Prevalência do negociado sobre o legislado – Ao explicar essa alteração legal, o magistrado pontuou que a lei não dá conta de contemplar todas as situações, atendendo às necessidades particulares de cada categoria, da faxineira ao médico, do operário ao músico. Daí a vantagem de se valorizar a negociação coletiva, mesmo que esta contrarie certos preceitos legais. “Não é o juiz ou o desembargador que sabe o que é melhor para o trabalhador. É o seu sindicato profissional”, pontua.

Ao combater a tese de que os sindicatos no Brasil não funcionam, não defendem, de fato, o trabalhador, ele informa que mais de 60% dos reajustes previstos em convenções coletivas nos últimos anos foram acima da inflação. Ele só vê vantagens em se empoderar o sindicato para atuar em defesa do trabalhador. “Essa lei quebra paradigmas, muda uma cultura, fratura um sistema ineficaz. Vamos abandonar os mitos, cessar as críticas antepostas e encarar a nova realidade”, conclama.

O juiz Melek esclarece que todos os direitos trabalhistas constitucionais são infensos à negociação coletiva. E tudo dependerá da chancela sindical, não haverá negociação direta com empregadores, a não ser para os altos patamares salariais. Um exemplo: pode-se reduzir o intervalo para 30 minutos se isso for negociado e autorizado pelo sindicato.

Tarifação do dano moral – Ao tocar nesse item, o palestrante explica que a Medida Provisória em edição irá substituir o salário contratual do empregado, como balizador da indenização, pelo teto da Previdência, dobrando o valor máximo. Mas ele defende o texto atual, dizendo que, se esse é o critério para o dano material, porque seria diferente com a reparação moral? “As pensões daqueles que caíram no elevador não vai ser diferente para cada um deles?”, contesta, referindo-se ao exemplo citado pelo desembargador Sebastião Geraldo, em sua palestra. A reparação, como prevista, seria relativa e proporcional à capacidade de pagar e à capacidade de receber, que é o que tem balizado hoje as condenações.

Gestante em ambiente insalubre – Quanto a essa questão, o magistrado explica que essa permissão foi incluída na lei para proteger o mercado de trabalho da mulher. Isto porque, os donos de hospitais não mais contratam mulheres, já que a gestante recebe até 17 meses sem trabalhar. Informou que foram as próprias representantes das categorias afetadas que pediram essa alteração na lei. “Agora, as gestantes vão poder trabalhar em ambientes de insalubridade leve ou média, nunca na máxima, e com parecer do seu médico liberando para o trabalho”, esclarece.

Terceirização – Ao abordar a questão da terceirização, prevista em lei própria recentemente aprovada e respaldada pela reforma, o palestrante informa que esse sistema tem sido adotado no mundo todo. “Só não tem na Venezuela”, ironiza. Ele acrescenta que, mesmo que haja pontos negativos e positivos a se discutirem, a terceirização irrestrita, inclusive na atividade fim, pode gerar empregos em cadeia produtiva complexa. Fazer com que deixemos de comprar produtos importados para produzirmos internamente, gerando empregos aqui no Brasil.

Trabalho intermitente “Dizem que é precarização, vemos como oportunidade. É questão de interpretação”, pondera o defensor da reforma.  E cita o exemplo de um dentista que tem uma secretária assoberbada, mas o trabalho no consultório não comporta mais uma assistente em tempo integral. Daí que essa possibilidade de contratação vai abrir as portas para que novos empregos surjam. Para ele, ainda que esses trabalhos intermitentes não sejam os empregos ideais, isso ainda é melhor que a informalidade, na qual se encontram mais da metade dos trabalhadores do Brasil. “Esses que estão na informalidade não têm nada, direito algum. E vão ter oportunidade de entrar com o pé direito no mercado de trabalho formal”, avalia.

Conciliação extrajudicial – O palestrante falou ainda da chamada jurisdição voluntária, que pode ajudar a desafogar o Judiciário trabalhista, ou seja, as partes podem se acertar em acordo extrajudicial e levar o termo pronto para homologação pelo juiz, que vai poder invalidar esse acordo em caso de fraude ou coação. A lei prevê ainda o distrato, término do contrato por livre acordo. Nessa modalidade de rescisão, o trabalhador não vai poder sacar o seguro-desemprego e receberá 80% do FGTS e apenas 20% da multa rescisória, além do pagamento integral de todas as verbas salariais.

Fim do imposto sindical obrigatório - “Não somos obrigados a comprar água da Cia de Saneamento local, porque sermos obrigados a pagar imposto sindical?”, questiona, acrescentando que agora os sindicatos vão ter “sócios”, ou seja, vão ser obrigados a atrair os filiados com boa prestação de serviços em prol da categoria. Senão, perderão seus contribuintes e não sobreviverão.

Equiparação salarial – Nesse ponto, as mudanças na lei foram a troca do requisito de “mesma localidade” para “mesmo estabelecimento empresarial” e para o “mesmo empregador”, devendo o trabalhador e o modelo indicado ter dois anos na mesma função e quatro anos na mesma empresa. As alterações, segundo Melek, devem contribuir para evitar as ações de cifras astronômicas envolvendo o direito à equiparação, onde empregados ganham isonomia salarial com outros de funções ou responsabilidades bem mais complexas. Um brinde à meritocracia, comentou.

Marlos Melek finaliza sua palestra recitando trecho da música de João Bosco e Aldir Blanc, imortalizada na voz de Elis Regina, que sintetiza sua expectativa com essa reforma:

            “A esperança dança a corda bamba de sombrinha

            E em cada passo dessa linha pode se machucar.

            A esperança equilibrista

            Sabe que o show de todo artista

            Tem que continuar..”

 

Palestra 2 - Rodrigo Carelli

Ao tomar a palavra, o Procurador do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro e Professor da UFRJ, Rodrigo Carelli, pôs-se a contestar vários pontos da fala do palestrante anterior, pontos esses que lhe teriam causado arrepios de espanto e pavor. Crítico feroz da reforma trabalhista, ele lança no ar algo a se pensar: “Certas burocracias podem evitar tragédias”.

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Segundo informa o procurador, com as leis das parcerias, pessoas estão sendo obrigadas a sair do emprego para serem parceiros no salão de beleza, sem nenhuma proteção trabalhista. “A ação civil pública tem natureza inibitória e pedagógica e as indenizações vultuosas têm esse objetivo”, esclarece, replicando uma fala do palestrante Melek, que criticou os altos valores de indenizações, capazes de quebrar uma empresa.

Para Carelli, o princípio da proteção está em xeque com a nova lei trabalhista. “O rei está em ameaça de ataque”, alerta, utilizando o que diz ser uma metáfora perfeita. Justamente porque o que está sendo atacado com a reforma é o princípio da proteção, a principal peça e espinha dorsal de todo o Direito Trabalhista.

De acordo com o palestrante, segundo as regras e princípios da OIT, o trabalho não é mercadoria e, portanto, não pode ser regulado pelo direito das coisas. “Não existe força de trabalho, existe o ser humano. O trabalho é uma condição para a existência do capitalismo, juntamente com a terra e o dinheiro. E essas três condições têm de ser reguladas”, pontua o palestrante, acrescentando que foi dessa necessidade de regulação para a sobrevivência do próprio capitalismo que surgiu o direito do trabalho.

Hoje, conforme apontou, vemos a invasão das teorias do direito do trabalho no direito comum, como na proteção aos idosos e incapazes. “Justamente nas situações em que há uma posição de vulnerabilidade de uma das partes em relação à outra”, completa. Isto porque, na visão do procurador, o Direito do Trabalho pretende dar autonomia a quem não tem condição de exercê-la. Portanto, sem as noções de vulnerabilidade e hipossuficiência, ele não existiria: “O Direito do Trabalho como ciência pressupõe a existência da hipossuficiência. Pode haver lei que regule o trabalho sem isso, mas Direito do Trabalho não há. Essa ideia sustenta todo o edifício do DT no mundo todo”.

A partir desse ponto, o palestrante passa a listar as funções do Direito do Trabalho, como:

Regulador de concorrência – o DT tem de regular essas “mercadorias fictícias” (trabalho) e faz isso em prol do sistema capitalista. Ele nada tem de socialista ou de revolucionário. É eminentemente conservador, assim como o direito ambiental, que regula a exploração da natureza colocando limites nessa exploração. O DT regula e legaliza a exploração do trabalho humano.

De acordo com o professor Carelli, isso se dá também entre os países, no direito internacional, e, no nível nacional, regula a concorrência entre os trabalhadores. Assim, eles não podem abrir mão de direitos como a carteira de trabalho assinada, horas extras, férias etc, para ficar em vantagem em relação a outros candidatos ao emprego. “Garante a concorrência em níveis leais e garante a dignidade humana”, constata.   

Funções antropológica e econômica - Ainda segundo o professor, o DT cumpre a função antropológica do direito, ou seja, para que não nos matemos uns aos outros, para não deixar a barbárie acontecer. É também garantia de vida longa do trabalhador no tempo curto do contrato de trabalho.

Além dessas, tem ainda a função econômica. E nesse ponto, o palestrante protesta contra a falácia de que o Direito do Trabalho gera desemprego. “É a pós verdade!”, dispara e aponta uma pesquisa , a qual demonstra que não há relação do Direito do Trabalho com o desemprego e ele não gera salários menores. “Isso não é culpa do direito do trabalho e essa reforma não vai resolver isso”, vaticina.

 O procurador lembra que quanto menor a jornada, mais empregos se criarão. Segundo ponderou, o DT garante maior produtividade e reduz a desigualdade social. Ele alerta para o risco social criado pela flexibilização. “Isso que se apresenta não pode ser chamado de reforma. Foi um verdadeiro vandalismo trabalhista. Pegaram vários pontos cruciais do DT e saíram arrebentando a esmo”, desabafa.

Precarização e desproteção - Para Carelli, o que se criou foram o terceirizado, o intermitente, o teletrabalhador escravo: “Regulou-se a CLT dizendo que os meios telemáticos permitem controlar a jornada. Agora a reforma diz que o empregador não tem como controlar a jornada de quem trabalha à distância. Nos Estados Unidos tem norma que diz que o empregador tem de delimitar a jornada do teletrabalhador e pagar de acordo com isso”.

Ele critica ainda a criação da figura do “hipersuficiente”, do trabalhador com salários mais altos que vai poder negociar diretamente com o empregador e abrir mão dos seus direitos. Se ele disser que não aceita determinada cláusula contratual, o empregador vai simplesmente dispensá-lo e procurar outro que concorde com seus termos.

O procurador diz ser contra as contribuições sindicais obrigatórias, mas não concorda com a ideia de enfraquecer os sindicatos. E, em vários pontos da reforma, conforme destacou, permite-se a negociação direta do trabalhador com o empregador, enfraquecendo os sindicatos. Por fim, protesta contra a tentativa de se inibirem as ações trabalhistas, com a restrição da justiça gratuita, a sucumbência, entre outras medidas previstas no texto da lei da reforma trabalhista.

Reação - “Essa reforma sofre de indigência científica. Tenta destruir a ciência do Direito do Trabalho e não tem inteligência sobre as questões cruciais nas quais toca”, alfineta, e conclama: “Precisamos, todos os operadores do Direito do Trabalho, tentar reconstruir o edifício bombardeado. Porque despencando o Direito do Trabalho, despenca tudo o que vem com ele”.

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Rodrigo Carelli encerra sua fala citando “As neves do kilimanjaro”. No topo dessa montanha, a mais alta da África, existe um leopardo totalmente desidratado e congelado. Ninguém sabe explicar o que ele foi fazer e como foi parar lá. “Cabe a nós não deixar o nosso leopardo chegar lá”, provoca.

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