Especial consciência negra: rejeição a tranças afro revela a face cruel do racismo estético
O juiz condenou a empregadora ao pagamento de uma indenização por danos morais, no valor de R$ 30 mil.
Chegamos ao dia 20 de novembro: Dia da Consciência Negra. Essa não é uma data formal, mas um momento que desperta e motiva reflexão sobre a história do racismo, os retrocessos e a evolução da consciência social sobre esse tema sensível.
Mesmo após testemunhar injustiças históricas que nos levaram à adoção de posturas e práticas antirracistas, atualmente, apesar de uma roupagem moderna, o mercado de trabalho ainda mantém as marcas da escravidão negra.
Nos dias de hoje, em que há mais espaço para debate, é difícil explicar por que a cor da pele ainda é capaz de despertar preconceito e discriminação racial, situação que ainda acontece com frequência, inclusive no ambiente de trabalho. É uma das faces do chamado racismo institucional. Para ilustrar essa realidade, convidamos o leitor para acompanhar um caso recente recebido pela Justiça do Trabalho mineira.
Recepcionista negra que se recusou a remover tranças afro receberá indenização no valor de R$ 30 mil
Tranças afro são apenas um recurso estético capaz de comprometer a boa imagem de uma empresa? Ou representam o símbolo de uma cultura, de uma tradição da identidade negra, capaz de promover a conexão com os povos ancestrais? Esse foi o tema central de um processo que retratou uma situação polêmica.
A 2ª Vara do Trabalho de Nova Lima recebeu a ação ajuizada pela recepcionista de uma clínica médica que denunciou discriminação racial no ambiente de trabalho. Ela relatou que perdeu o emprego após se recusar a remover suas tranças afro, conforme determinação da chefe. De acordo com a justificativa da coordenadora da clínica, o penteado da recepcionista negra não se enquadrava no padrão estético que a boa imagem institucional exigia. O caso foi submetido à apreciação do juiz Henrique Macedo de Oliveira, que condenou a empregadora ao pagamento de uma indenização por danos morais, no valor de R$ 30 mil.
Adequação ao dress code organizacional – Dress code é uma expressão em inglês que significa código de vestimenta. É um conjunto de regras, muitas vezes escritas, relacionado a roupas. Esse código de vestimenta é criado a partir de percepções e normas sociais e varia de acordo com o propósito, as circunstâncias e as ocasiões.
No caso, a empregadora mantinha contrato com uma consultora de moda para orientação quanto à imagem, vestimentas e forma de atendimento aos clientes finais, entre outros aspectos. Conforme narrou a recepcionista, depois que retornou das férias, sua superiora imediata observou que ela havia feito tranças afro no cabelo e tirou foto para levar à consultora de imagem, que verificaria a adequação da mudança de visual.
A consultora, em ligação telefônica para a recepcionista, com o conhecimento da empregadora, teria constrangido a trabalhadora a retirar as tranças, ao argumento de que o visual não combinaria com a imagem da clínica. A recepcionista, por sua vez, relatou que se negou a atender à solicitação da consultora e, dias depois, foi dispensada sem justa causa.
Na visão da recepcionista, a dispensa foi discriminatória, em retaliação à recusa do pedido. Ela acrescentou que, na mesma ligação telefônica, a coordenadora da clínica demonstrou ter conhecimento da ajuda que a consultora prestou à trabalhadora em um tratamento capilar, o que foi interpretado pela reclamante como exposição indevida.
Ao se defender, a clínica médica sustentou que a dispensa da autora da ação ocorreu em razão da drástica queda de movimentação, em consequência da pandemia do novo coronavírus. Afirmou que a recepcionista sempre foi valorizada e elogiada pela empregadora. Alegou que a conversa mantida com a consultora de imagem ocorreu em caráter privado e que não houve determinação para que a reclamante alisasse os cabelos. Acrescentou que a empresa não causou à autora da ação, direta ou indiretamente, nenhum dano moral.
Já a consultora de imagem, em sua defesa, argumentou que a recepcionista não foi vítima de tratamento discriminatório, pois solicitou apenas que esta fizesse um penteado formal. Confirmou que a dispensa da trabalhadora ocorreu em razão de dificuldades financeiras da clínica médica, após a pandemia do novo coronavírus. Por fim, ela declarou que soube pela própria recepcionista, e não por terceiros, a respeito do tratamento capilar.
Quanto à alegação da recepcionista de que houve exposição pelo fato de a empregadora ter procurado a consultora para conversar com ela sobre o tratamento capilar que teria sido custeado pela clínica, o juiz descartou a ocorrência do dano moral. Isso porque, no entendimento do magistrado, a recepcionista não demonstrou que foi a representante da clínica quem revelou à consultora o tratamento capilar que a empregadora pagou. “De toda sorte, ainda que tal circunstância tivesse sido demonstrada, não haveria que se cogitar em ato ilícito, seja porque o fato realmente ocorreu, seja porque não teria havido lesão à honra da trabalhadora pelo simples fato de tal auxílio de ter sido noticiado pela primeira ré à segunda”, concluiu. Entretanto, os demais argumentos patronais não convenceram o julgador.
Gravação telefônica juntada ao processo - Para melhor elucidação dos fatos, o magistrado transcreveu na sentença trechos da gravação telefônica juntada ao processo. Na conversa entre a recepcionista e a consultora, esta argumentou que o novo visual da trabalhadora é muito informal para a sua profissão, principalmente no padrão da clínica: “Não dá para você trabalhar com ele, fica muito informal mesmo, sabe, tem até uns penteados, alguns cortes de cabelo que de fato é dress code de empresa muito casual, muito informal, não se enquadra tipo em banco, clínica médica, essas coisas (...)”.
Em outros trechos da conversa, a consultora reiterou a tese do “dress code corporativo” e frisou que não são meras dicas, são normas. “Existem duas coisas muito distintas, uma coisa chama estilo e outra coisa chama dress code, a pessoa pode ter o estilo que ela quiser, mas a partir do momento que ela tem um trabalho e o trabalho dela tem o dress code corporativo formal, ela precisa se enquadrar nisso ou então não tem como ela trabalhar”.
Em outra passagem, a consultora reafirma a sua resistência ao novo penteado da recepcionista: “(...) Então, eu não consigo que as recepcionistas trabalhem com o cabelo que não seja formal. Um cabelo formal não está incluído um cabelo liso, alisado, um cabelo formal é um cabelo formal”.
Neste trecho, a consultora comparou a trança afro ao uso de um uniforme e deixou a última “recomendação” ou “opção” para que a recepcionista desfaça o penteado: “Quando eu te dou a opção de se enquadrar no dress code da minha empresa, te dou uniforme, não te dou? Da mesma forma, eu vou mandar uma pessoa aí para te ensinar como que o seu cabelo tem que tá adequado para o dress code corporativo da empresa”.
Análise e conclusões do magistrado - Na avaliação do juiz Henrique Macedo, não há no processo nenhum elemento de convicção que indique que as tranças da recepcionista fossem, de algum modo, impróprias para utilização no local onde a atividade profissional era exercida. Ele frisou que sequer foi juntada imagem da trabalhadora com as tranças que causaram o constrangimento alegado pelas rés, embora a consultora, em seu depoimento pessoal, tenha dito que as tranças da reclamante eram em castanho dourado e organizadas de maneira bem informal.
Citando vários autores em sua sentença, o magistrado teceu considerações sobre a força simbólica dos cabelos para a identidade negra e para os povos de origem africana e enfatizou o indiscutível valor histórico e cultural dos cabelos trançados à moda africana, sem prejuízo do significado individual. A partir dessa análise sociológica sobre o tema, o julgador concluiu que deve ser afastada a alegação patronal no sentido de que o uso das tranças seria incompatível com a formalidade do ambiente de trabalho. “O tratamento dado ao tema pela empregadora parte de um raciocínio reducionista e que carrega uma visão muito distorcida da nossa sociedade, tão plural quanto complexa em sua identidade”, pontuou.
Conforme acentuou o magistrado, o chamado racismo institucional, embora comum, tem sua verificação muitas vezes dificultada em decorrência de um discurso antirracista absolutamente incompatível com a prática. Assim, o acesso, a permanência ou a ascensão da pessoa negra nas instituições (públicas ou privadas) são, não raro, mais penosos do que para o indivíduo branco, sem que tal circunstância seja explicitamente demonstrada. “Parece-me que a situação no caso concreto é reveladora dessa prática: a reclamada negou a conduta preconceituosa, afirmou em diversas passagens da defesa o seu bom relacionamento com a autora, tendo, inclusive, apresentado várias postagens em redes sociais que explicitariam a excelente convivência com a demandante, mas, quando afrontada pela identidade visual da trabalhadora, que decidiu valer-se de um recurso estético que reforçava sua identidade negra, a empregadora entendeu que a imagem da demandante não mais se adequava ao ambiente organizacional e dispensou-a”, completou.
Em sua análise, o julgador reconheceu que os reflexos econômicos da pandemia podem ter levado a empregadora a decidir pela redução do seu já enxuto quadro de pessoal. Entretanto, para ele ficou claro que a escolha pela dispensa da recepcionista teve ao menos como concausa a recusa da trabalhadora em modificar o visual. Isso porque a ligação telefônica examinada pelo juiz ocorreu em 14/4/2020, conforme esclarecido pela representante da clínica em seu depoimento, e o encerramento do contrato se deu no dia 20/4/2020, ou seja, menos de uma semana depois.
Com base em diversos critérios e por reconhecer que é discriminatória a dispensa que se funda em concepções preconceituosas, o julgador fixou a indenização por danos morais no valor de R$ 30 mil. Ao finalizar, o magistrado chamou a atenção para a dificuldade em identificar os discursos racistas, quase sempre velados e carregados de justificativas e de negacionismo. Em outras palavras, o discurso mais ouvido, aceito e confirmado pela sociedade é aquele segundo o qual não existe racismo e tudo não passa de vitimismo da pessoa de pele negra. Porém, a realidade tem mostrado que esse discurso não é verdadeiro.
“A inadequação que a primeira reclamada percebeu nas tranças da trabalhadora traduzem uma perspectiva de desajuste quanto ao modo de ser e de existir da pessoa negra, que deveria, assim, abster-se de revelar seus símbolos de autoafirmação em benefício de uma pretensa padronização aos modelos impostos pelo grupo que reclama e exerce a hegemonia cultural. Todavia, nem sempre essas relações estão explicitamente reveladas nos discursos. Na maioria das vezes, especialmente numa sociedade que acredita viver uma democracia racial, é necessário ir a fundo nas condutas para que seja possível compreender as motivações implícitas e, sobretudo, as consequências dessas ações. Quando estas são esquadrinhas e as intenções subjacentes reveladas, constata-se que o racismo é um problema presente no ‘DNA’ da sociedade, ou seja, ele se projeta por toda a estrutura de relações que formam as instituições (família, igreja, empresas, partidos políticos etc.)”, concluiu.
A recepcionista e a clínica médica interpuseram recursos, que serão julgados no TRT mineiro.