Painel 2: A reforma trabalhista e o combate ao trabalho escravo contemporâneo: Impactos e soluções.
Adriana Augusta: Impactos da nova Lei 13.467/17 sobre trabalho escravo
A Procuradora-Chefe do Ministério Público do Trabalho em Minas Gerais, Adriana Augusta de Moura Souza, abriu o segundo painel, intitulado “A reforma trabalhista e o combate ao trabalho escravo contemporâneo: Impactos e soluções”, chamando a atenção para um fato curioso: nada do que se faz hoje no combate ao trabalho escravo contemporâneo encontra respaldo na CLT! Não há nela nenhuma previsão ou tipificação para que depois se dê o ajuizamento de Ações Civis Coletivas, Ações Civis Públicas ou a persecução criminal pelo Ministério Público Federal, por exemplo.
“Nada disso está na CLT. Ela traz contornos do Direito do Trabalho para que nós possamos identificar o tipo penal do artigo 149 do Código Penal, que é a tipificação de um crime”, registrou, referindo-se ao artigo penal que prevê como crime a prática de reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho ou restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador. Com as conceituações advindas desse tipo penal (jornada exaustiva, trabalho degradante e outros), que é de caráter trabalhista, aí sim pode-se ir à CLT e buscar os contornos desse tipo penal. Mas o que baliza a conceituação de trabalho escravo é, sem dúvida, a Constituição, já que tratar de trabalho escravo é falar de afronta a direitos humanos. “Nós operadores do direito do Trabalho temos a Constituição Federal, e todas as normativas internacionais de aplicação prática no nosso país pelo artigo 5º da Constituição, porque versa sobre direitos humanos”, pontuou.
Matriz constitucional -A palestrante lembrou que a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho estão previstos como fundamentos da Constituição Federal (artigo 1º). “Isso aqui não é sonho ideológico. Isso está na CF. Esta nossa República, esta nossa Pátria, tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho”, reiterou.
E mais. O artigo 3º da Constituição ainda prevê que são objetivos do Estado Democrático de Direito: construir uma sociedade justa, livre e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos. Para a palestrante, é dever de todos os operadores do direito, agentes políticos como governantes ou como membros do legislativo, cumprir o objetivo de construir uma sociedade livre. Já o artigo 4º da CF/88 fala de prevalência dos direitos humanos. Os artigos 5º a 17 incorporam a Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, porque dispõem sobre garantias e direitos fundamentais.
Outro ponto levantado pela representante do MPT-MG foi que a OIT reconheceu, em 1998, declarações sobre princípios e direitos fundamentais do trabalho como fundamentais para todos os Estados Membros que aderem aos tratados da ONU. Dentre os quais, lembrou, estão as Convenções 29 e 105, que justamente tratam de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório.
Contra a Reforma - Para a palestrante, apesar do impacto que a Reforma Trabalhista traz para o dia a dia e a prática do Direito do Trabalho, “os nossos olhos têm que estar sempre voltados para as máximas da Constituição Federal”. Ela defende que, quando essas máximas são afrontadas é “nosso dever” recorrer à Justiça para que essas ameaças sejam alijadas do mundo jurídico. E, segundo esclareceu, é isso o que o Ministério Público está fazendo hoje, até porque tem uma assessoria trabalhista junto à Procuradoria Geral da República. Ela contou que as normas do PLC 30, que estavam em discussão no Congresso, vinham sofrendo estudos bem profundos da Procuradoria Geral do Trabalho, de modo a possibilitar que as considerações sejam levadas ao Procurador Geral da República, para que ele então possa aviar a necessária Ação Direta de Inconstitucionalidade em relação a vários itens da nova Lei.
Inconstitucionalidades - Com relação ao conteúdo da Lei, a Procuradora abordou as situações que mais chamaram a atenção dela, quanto a possíveis afrontas à Constituição Federal.
A primeira foi relativa ao dano extrapatrimonial. Adriana Moura esclareceu que o artigo 223-A fala em “aplicação exclusiva” dos dispositivos do novo título II para reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes de uma relação de trabalho. Por isso, considera que qualquer um que venha a pleitear dano extrapatrimonial (dano moral) na Justiça do Trabalho só pode utilizar os dispositivos da nova Lei (223-A a 223-G). Destacou que foi afastada a aplicação do Código Civil que, em seus artigos 186 e 927, trata justamente da responsabilidade objetiva. “Quando vem o artigo falando que é exclusivamente esse título, fere e rompe toda a estrutura até hoje vigorante na Justiça do Trabalho, até hoje usada pelo próprio MPT para pleitear em suas ações a reparação do dano moral coletivo ou individual, daquele que é resgatado, justamente porque nós sempre utilizamos todo o arcabouço normativo que se referia a reparação do dano”, ponderou.
Por sua vez, lembrou que o artigo 5º da Constituição Federal fala, em seu inciso V, que a resposta tem que ser proporcional ao agravo, à ofensa que gera o dano moral. No aspecto, o artigo 223 da nova Lei tarifou o dano moral, ao prever indenização de acordo com a natureza da ofensa. Dessa forma: até cinco vezes o salário contratual do ofendido, se for de natureza leve; até dez vezes, se for média; e até 50 se for grave. Ainda segundo a palestrante, o artigo 5º, caput, inciso X, da Constituição e o artigo 1º, inciso III, falam da reparação global do dano.
“Quando há a tarifação no parágrafo 1º do artigo 223-G, o critério é discriminatório, pois confere importância a quem recebe maior salário. Quanto mais você receber, mais dano moral vai ganhar”, comentou, mais uma vez levando a plateia à reflexão: “Quando se fala de trabalho escravo, quem é que a gente resgata”? E já respondendo: “Quem ganha o mínimo do mínimo e muitas vezes não ganha nada!”. Questionou ainda qual seria o dano moral dessa pessoa: “Se estamos falando de trabalho escravo, estamos falando de afronta à dignidade humana, a mais grave das ofensas”. E aí, se não há sequer contrato ou salário, como estipular a multa prevista na nova Lei, de 50 vezes o salário? A procuradora relatou que em ações movidas pelo Ministério Público, por conta de resgates, há condenações que alcançaram R$5 milhões. Ela lembrou também o caso da loja Zara, que firmou acordo com o MPT de R$ 7 milhões por submeter trabalhadores a trabalho análogo ao de escravo. “Se se prevalecer o que consta na nova lei, jamais teremos esse tipo de indenização”, avaliou. E isso, independentemente do porte do empregador.
Outra questão: o artigo 223-C, que se refere aos bens jurídicos tutelados por esse dano extrapatrimonial. O dispositivo se referiu à honra, imagem, intimidade, liberdade de ação, autoestima, sexualidade, saúde, lazer e integridade física como bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física. Mas não inseriu o inciso V do artigo 5º da Constituição, que trata da vida privada. Na visão da representante do MPT, exatamente o que se retira da pessoa quando ela está em um ambiente de trabalho escravo. “Aqui é possível observar que houve afronta direta à Constituição Federal”. Ainda conforme observou, o artigo 5º trata da tutela do dano, “proporcional ao agravo e irrestrita”. Segundo ela, a Constituição Federal não parametriza o dano. “Isso compete ao Poder Judiciário”, destacou.
Justiça restrita - Para a Procuradora, não há dúvidas de que o Poder Judiciário está sendo restringido no seu mister constitucional de dizer a jurisdição. Ela lembra ainda dos artigos 790-B, 844 e 507-B. E a conclusão alcançada é a de que há violação ao direito constitucional de acesso à Justiça, ao dificultar e encarecer a tutela jurisdicional do trabalhador. Isto porque terá que pagar custas, honorários advocatícios e periciais, mesmo quando for beneficiário da justiça gratuita. E se o empregado não vai à primeira audiência, há o arquivamento do processo, só podendo entrar de novo se pagar as custas em 15 dias. E desde que ele comprove que não foi à audiência por motivo justificado! Mais um absurdo, em sua avaliação. “Uma afronta sistemática ao acesso à Justiça!”, expressou.
Já o artigo 507-B dispõe que: é “facultado a empregados e empregadores, na vigência ou não do contrato de emprego, firmar o termo de quitação anual de obrigações trabalhistas, perante o sindicato dos empregados da categoria”. Mais uma restrição pontuada pela palestrante, considerando a assimetria de forças entre empregado e empregador, por exemplo, no curso do contrato. Para a Procuradora, isso implicaria vicio de vontade.
Jornada exaustiva - Um outro ponto que considerou importante levantar, “porque estamos tratando de trabalho escravo” foram os artigos 611-A e 611-B, parágrafo único. A jornada de trabalho foi desvinculada das medidas de saúde e de segurança do trabalhador, com objetivo de autorizar a livre negociação de jornada e intervalo para descanso. “A jornada exaustiva constante do artigo 149 do Código Penal é justamente porque é um agravo à saúde, por isso ele é considerado um dos tipos penais do trabalho escravo”, explicou.
A Procuradora lembrou caso envolvendo a morte em canaviais em São Paulo em razão de jornada exaustiva. “Como isso não faz parte de saúde e segurança? Agora a CLT está dizendo que não faz”, questionou, enxergando nesse tópico ofensa direta ao artigo 7º, inciso XXII, da CF, que trata da redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho como direito fundamental do trabalhador.
Na visão da palestrante, o artigo 702, inciso I, também constitui violação ao acesso ao Judiciário. “Para ter súmula de jurisprudência tem que ser unânime a súmula por todos os desembargadores e a votação tem que ser em 10 sessões contínuas”, explicou, ponderando se tratar de exigência muito mais rígida que a requerida para a Súmula Vinculante do STF.
Trabalho intermitente - Prosseguindo, Adriana Augusta destaca o ponto que considera mais nefasto: a flexibilização das formas de contrato de trabalho, facilitando regimes alternativos de menor proteção. A Procuradora enfatizou não estar se referindo aqui apenas à terceirização de forma irrestrita (prevista no artigo 2º da nova Lei, alterando de novo a Lei nº 6019/74 no seu artigo 4-A). Ela fez menção também ao trabalho intermitente. “Para mim, o pior de tudo que a nova Lei trouxe, porque ela conceitua no artigo 3º que você pode trabalhar na hora que o empregador quiser, na hora em que ele te chamar”, comentou, referindo-se ao fato de que, pela nova lei, o tempo de inatividade não será considerado tempo à disposição do empregador.
Terceirização - Ela questionou ainda a terceirização irrestrita autorizada pela nova Lei, sendo que o terceiro é a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço que possua capacidade econômica compatível com a sua execução. Aqui a Procuradora enxerga uma brecha para declarar a fraude, já que o gato ou o turmeiro, que contratam ou aliciam os trabalhadores, não têm a capacidade econômica. Aí sim, o vínculo vai para o tomador do serviço. “Mas a nova lei vai criando artimanhas jurídicas que vão impedindo essa interpretação”, critica.
Ações e mais ações - Por fim, afirmou que a notícia alvissareira que poderia dar é que o Procurador Geral da República, por construção coletiva do Ministério Público do Trabalho, ajuizou a ADI 5735 contra a Lei recentemente publicada da terceirização e vai emendar para contemplar agora o novo artigo 4-A da Lei 13.467. Como explicou, o dispositivo nada mais fez que expressamente dizer que a terceirização é possível irrestritamente. A Procuradora apontou existirem outras três ADIs propostas por partidos políticos contra a lei e que já contam com parecer da Procuradoria Geral da República. Todas foram unidas para julgamento comum.
Ao final do evento, ela registrou ainda que não vai ser lei “ordinária” que vai impedir o Ministério Público de ajuizar ação. No seu entendimento, essa deve ser a nossa espada: ações e mais ações. “A gente luta é com ação, advogado entra com ação, reclamante com seu jus postulandi, Ministério Público, com ação civil pública. Porque a gente tem que lutar pela dignidade do trabalhador. E ninguém vai nos restringir porque a Constituição não nos restringe”.
Inspirada por Belchior, ela deixou uma mensagem à plateia: “Que nessa comédia humana pouco divina, agora temos ainda mais motivos e a obrigação de nos manifestar! Eu vos direi no entanto, enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não. Eu canto. Nunca fomos (advocacia, trabalhadores, MPT e Justiça do Trabalho) tão essenciais à defesa dos direitos sociais dos trabalhadores como agora. Então vamos cantar”.
Música do Belchior: https://www.letras.mus.br/belchior/44454/
Marcelo Gonçalves: O campo de luta é a organização dos trabalhadores
“Não queria ser pessimista, mas tendo que ser realista, serei pessimista. Reverberando as falas anteriores, não tem como já não começar concluindo que a vaca do Direito do Trabalho foi para o brejo. E vaca atolada no brejo é quase impossível de tirar”. Foi com essa lamentação que o Auditor Fiscal do Trabalho Marcelo Gonçalves Campos iniciou sua fala, manifestando profundo pessimismo em relação à atual situação do Direito do Trabalho.
Contextualizando, ele relata que, na realidade brasileira o sistema Capitalista conviveu, ao longo do Século XIX, com formas de trabalho tipicamente escravas. Mas já naquela época, em plena escravidão clássica os trabalhadores já se mobilizavam e protestavam. “Zumbi dos palmares está na História como herói nacional para nos lembrar disso. E a princesa Isabel nem havia assinado ainda a Lei Áurea. Então a luta dos trabalhadores pela liberdade, pelo trabalho digno, precede a qualquer momento histórico, factual, que nos é dado como momento de libertação dos escravos”, ensina, acrescentando que o que traz a liberdade é a luta dos trabalhadores. E, na sua avaliação, foi essa luta dos escravos, imigrantes e seus descendentes que construiu o Direito do Trabalho no Brasil, luta essa que custou não só a saúde, mas até a própria vida de muitos. Ele observa que foi da necessária harmonização entre essa luta e os interesses do sistema Capitalista que se formou a legislação trabalhista que até então tínhamos, e chegamos até a conquista máxima de constitucionalizar os direitos trabalhistas.
Afirmando que o Direito do Trabalho talvez tenha sido a pedra angular mais importante da sociedade nos últimos séculos, o palestrante frisa que ele se firmou como uma ferramenta para garantir o mínimo de cidadania, de dignidade e direitos sociais para aqueles que trabalham no sistema Capitalista.
Nesse contexto, e tecendo críticas à Reforma Trabalhista, o Auditor fiscal lamenta a derrota sofrida pelos trabalhadores e as instituições ligadas ao mundo do trabalho. Para Gonçalves Campos, a Reforma Trabalhista não apenas impacta a atual política do trabalho escravo, mas é, em si, a própria política do trabalho escravo. Isto porque, com o que está posto, este deixará de ser algo periférico, chegando ao conjunto dos trabalhadores. Ele afirma que todas as 100 medidas aprovadas pela reforma servirão para tornar legal o que até então era considerado uma fraude. E tudo o que era considerado ilegal e indigno passará, então, a ser aplaudido como “modernidades”. No seu entendimento, a partir dessas mudanças, a jurisprudência será no sentido de reafirmar a precarização.
Finalizando, o palestrante diz que continuarão lutando, já que a luta é necessária, mas que não nos enganemos, pois o campo da luta não é mais o parlamento. Para ele, o campo da luta, no momento atual, é o da organização dos trabalhadores. “E alguém vai gritar, nessa sala escura que se tornou nosso país que, se não houver direito dos trabalhadores, também não haverá direito de propriedade” , expressou Gonçalves Campos, arrematando que se os empregadores e o capital se dispõem a trazer de volta contratos e formas de exploração do século passado, também será legítimo aos trabalhadores trazer formas de luta semelhantes, como quebrar máquinas.
Antônio Carlos: A saída está na fiscalização efetiva e no consumo consciente
Coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT, Antônio Carlos de Mello inicia sua fala manifestando tristeza pelo que está acontecendo no país, em relação às leis recentemente aprovadas. Ele destaca que, ao analisar os perfis das vítimas de trabalho escravo nos programas de que participa, nota que a maioria esmagadora desses trabalhadores são oriundos de processos de intermediação de mão de obra, de terceirizações, muitas vezes informais e sem nenhum tipo de regulamentação. Até porque, em geral, aí o Estado está ausente. “Essa é a natureza do que a gente vai enfrentar a partir de agora, com a terceirização irrestrita legalizada e a flexibilização formalizada”, pontua, confessando o seu temor de ver ir-se por água abaixo muito do que se construiu até aqui, a duras penas, no combate ao trabalho escravo.
Fiscalizar é preciso - Para o palestrante, faltava pouco a dizer, depois de tudo o que foi exposto no Congresso. “Só faltou falar de outra ferida de morte no corpo do combate ao trabalho escravo, que é a fragilização da fiscalização do trabalho”. Ele relatou que a última estatística sobre o número de trabalhadores resgatados do trabalho escravo, publicada no início do ano, revelou que o número de libertados caiu 34% em relação ao ano anterior, e esse é o menor número desde 2000. “Isso não aconteceu porque caiu o número de pessoas escravizadas no Brasil, mas porque caiu o número de inspeção também”, concluiu, acrescentando que, com as formas modernas de escravização, a expertise em termos de exploração também aumenta.
Antônio Carlos trouxe a preocupante informação de que os grupos móveis de fiscalização foram reduzidos de 8 para 4, e a tendência é cair ainda mais. Nas viagens pelo Brasil, ele ouve os fiscais e auditores falarem da completa falta de recursos. Em alguns estados o dinheiro já acabou. “E estamos na metade do ano!”, alarma-se, ao constatar que, no restante do ano não haverá mais fiscalização de trabalho escravo, o que vai levar a nova redução do número de resgatados e até ao possível retorno de alguns deles a essa condição.
Criatividade na crise - Apesar de tudo, ele acena com um dado promissor: é que momentos de crise acabam por gerar inovações. E noticia que tem observado os estados se organizando, as centrais tentando se fortalecer e forças-tarefa entrando em ação, um misto de grupo móvel tradicional estadual que atua junto com uma política pública governamental e entidades de atenção às vítimas do trabalho escravo. Tudo isso faz com que esse problema da diminuição de recursos seja, ao menos, minimizado. Ele cita o fato de algumas secretarias de justiça e direitos humanos dos estados estarem ajudando na organização e no financiamento de fiscalizações. “Esse é o tipo de inovação que temos de buscar neste momento. Inovação que parte da aliança entre as organizações de combate ao trabalho escravo, de uma maneira não tradicional, mais criativa”, ensina.
Outro ponto positivo que o palestrante levanta é o surgimento de um novo olhar sobre a questão, quebrando tabus até então existentes, como a inviolabilidade do lar. Prova disso é a notícia recente do resgate de uma empregada doméstica da residência dos patrões. E, segundo o palestrante, é bom jogar os holofotes sobre essas formas de escravidão que, na verdade, são muito antigas, mas que só agora se tornam visíveis, como a questão do trabalho escravo doméstico. Também na exploração sexual, ele chama a atenção para o fato de que há muito se fala da exploração das meninas, mas nunca se tratava da exploração masculina. Ele conta que tomou conhecimento de um caso recente, em que se investiga a exploração sexual de jovens homossexuais do Pará e do Maranhão, vivendo num estado longe de sua origem, com promessas de transformação de corpo, mas obviamente com servidão por dívida, condições degradantes, etc. E alerta: “Temos de atacar essas novas formas de exploração que vem ganhando força no Brasil”.
Prosseguindo, o representante da OIT lembra que o protocolo assinado em 2014, que é um aditivo à Convenção 29, faz parte dos princípios e direitos fundamentais do trabalho e, por isso, seu cumprimento também é exigível de qualquer Estado-membro da OIT. Esse protocolo, conforme explicitou, traz à tona diversas temáticas. “Primeiro, tenta corrigir historicamente o afastamento do tema do tráfico de pessoas com o trabalho escravo. O protocolo menciona essa aproximação e fala também da importância do envolvimento dos empregadores na ação contra o trabalho escravo”.
A pressão do consumo consciente - Em suas andanças pelo Brasil, Mello disse ter notado uma dualidade no setor produtivo, com uma ala ainda coronelista, mais propensa à exploração selvagem da mão de obra, e uma nova geração de empresários mais preocupados em vender no mercado externo, o que dependerá, necessariamente, da imagem dessas empresas no exterior. E aí é que ele aponta uma das saídas possíveis: apelar para o consumo consciente. Ou seja, focar em ações que divulguem essas práticas ilegais e empreender campanhas para que as pessoas não consumam produtos de quem explora mão de obra escrava. Esse tipo de pressão, conforme ponderou, é o mais eficiente para que haja uma mudança de atitude desses setores produtivos. Como prova da eficiência dessa tática, citou a notícia veiculada na CNN, informando que a Inglaterra não iria mais comprar carne da JBS. Tudo fruto de uma notícia de jornalismo investigativo que relatava a vinculação da JBS com o trabalho escravo. “Ou seja, estamos num mundo globalizado, que exige cada vez mais o consumo consciente. É uma exigência mundial. E é por aí que podemos atacar. E eu vejo uma ala do empresariado que já está se preocupando com isso”, comemora.
Uma boa iniciativa, relatada na palestra, pode servir de exemplo e inspiração: a Associação Matogrossense de Produtores de Algodão criou o Instituto Algodão Social que, com a ajuda da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso (que treinou os auditores contratados pelo instituto), realizou visitas a cada uma das fazendas dos produtores de algodão do estado, mesmo as menores, fiscalizando e orientando a que buscassem uma conformidade trabalhista e ambiental. Hoje, esse trabalho é referência para o Brasil inteiro. Isto porque o Mato Grosso, praticamente, erradicou o trabalho infantil e o trabalho escravo na produção do algodão.
Assim como essa boa iniciativa, o palestrante citou empresas que, depois de anos levando multas pesadas, estão agora implementando sistemas de auto-regulação e certificação dentro da sua cadeia de produção, com relação ao trabalho escravo.
A força da integração - Diante desse quadro e apelando para a criatividade, ele diz ver alguma luz no fim do túnel. Mas, ressalta: “Precisamos agora praticar algumas palavrinhas: articulação, integração, coordenação, integralidade e multidisciplinariedade, tanto na repressão quanto na prevenção e na atenção às vítimas, com fortalecimento das comunidades de origem desses trabalhadores”.
Isto porque, nas palavras de Antônio Carlos, não adianta remediar. Ele relata que a OIT apoia um projeto do estado do Mato Grosso que tenta trabalhar individualmente com cada um dos trabalhadores resgatados, para tentar reintegrá-los na sociedade. “Mas não adianta trabalhar só dessa maneira. É preciso intervir na comunidade de origem, onde eles são aliciados. E isso só com essas palavras é que a gente vai conseguir”.
Informação como arma - No seu entendimento, já é mais que hora de começar a olhar para a importância da geração de conhecimento, da inteligência, e de ter cada vez mais ferramentas para fazer isso de maneira mais focada, tanto no momento da repressão, quanto na atenção às vítimas. Um bom exemplo disso é o Observatório Digital do Trabalho Escravo, lançado recentemente pela OIT e pelo MPT, que traz informação de maneira fácil, rica, já referenciada, fazendo ligação com as políticas públicas principais para trabalhar a temática do trabalho escravo. “Então, mais do que lamentar tudo isso que está acontecendo, penso que é o momento de realizar o chamamento a que nós trabalhemos de maneira cada vez mais unida, mais interdisciplinar”, convida.
Antônio Carlos diz acreditar que o fato de Minas Gerais ter sido campeã de resgate de trabalhadores no ano passado é porque o grupo se esmerou para fazer o trabalho de repressão, trabalhando articulado e em conjunto, atento às bases de dados, para agir direto nos alvos certos. Outro exemplo citado foi a Clínica de Trabalho Escravo da Faculdade de Direito da UFMG que, de acordo com o palestrante, tem trabalhado não apenas a parte de direitos desses trabalhadores, mas integrados também com a Faculdade de medicina, atendendo aos trabalhadores resgatados. “E por que não integrar também a faculdade de assistência social e por que não estender para outras faculdades do estado de Minas Gerais?”, provoca, entendendo estar na multidisciplinariedade um dos caminhos para o combate eficaz dessa chaga.
Finalizando, o palestrante relata que a OIT está em entendimento com a Clínica, o MPT e com a Superintendência Regional de Trabalho e Emprego, visando a realização de um projeto mais extenso no estado de Minas Gerais, para que se potencializem as inciativas de combate ao trabalho escravo. “Mas sempre nos valendo dessa interdisciplinariedade para que se consiga, de fato, atender esses trabalhadores e combater o trabalho escravo com inteligência, com foco, tendo um olhar para esse ser humano como o centro da questão”, conclui.
Debatedor 1 - Hélder Magno: Órgãos de proteção ao trabalho precisam se reinventar e prosseguir na luta
Em sua fala, o Procurador da República Hélder Magno da Silva, que atuou como debatedor do painel, reforçou que o enfrentamento ao trabalho escravo deve continuar sendo feito com a união dos órgãos engajados nessa luta (MPT, MPF, MTE e COMITRATE). E que, apesar dos pesares da reforma trabalhista, ainda temos instrumentos de combate: as normas constitucionais e os pactos internacionais a que o Brasil aderiu.
Lembrou o debatedor que a atuação das Cortes Internacionais (houve uma condenação do Brasil pela corte interamericana) foi fundamental para o aprimoramento da persecução criminal ao trabalho escravo.
Ele ponderou que, sob a ótica dos Direitos Humanos, as violações aos direitos são sempre interligadas, citando o exemplo de uma mineradora onde se constatou a prática de violação aos direitos humanos e também a prática de trabalho análogo ao de escravo. Ou seja, a violação aos direitos trabalhistas vem acompanhada de aniquilação dos direitos humanos.
Em relação ao momento que estamos atravessando, de redução orçamentária, observou que todos os órgãos estão sentindo a necessidade de produzir mais com menos recursos. E diante do que chamou de “submissão do direito à economia”, disse que é preciso buscar mecanismos para nos insurgirmos contra esse estado de coisas, ao menos na busca de prioridades.
E, na condição de debatedor, o Procurador da República trouxe um questionamento: como os órgãos de proteção do trabalho podem se reinventar nessa perseguição às situações de violação dos direitos dos trabalhadores? E, na sequência, reafirmou que o MPF está atento e pronto a atuar conjuntamente com os demais órgãos.
Finalizou dizendo acreditar que não é hora de entregarmos os pontos e, com força, vontade e garra, o momento pode ser aproveitado para fortalecimento, união e luta.
Debatedor 2 - Des. Luiz Ronan: Escravidão moderna é a venda de sonhos
Encerrando o Congresso e fechando o painel A reforma trabalhista e o combate ao trabalho escravo contemporâneo: Impactos e soluções, o desembargador Luiz Ronan Neves Koury, 2º Vice-Presidente do TRT de Minas, Ouvidor e Diretor da Escola Judicial, citou o espanhol Joaquin Herrera Flores. O autor pontua que os Direitos Humanos têm o papel de abrir e consolidar espaços de luta pela dignidade humana. Nesse sentido, o magistrado lembrou que os direitos humanos nascem a partir da Declaração Internacional de 1948 e com o sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos. Também citou a autora Flávia Piovesan, segundo a qual o sistema normativo internacional constitui uma espécie de constituição global de defesa de Direitos Humanos.
Uma questão considerada fundamental pelo magistrado é que a dignidade da pessoa humana pautou as Constituições. “Isso passou a ser referência e reverência das Constituições”, explicou, ressaltando que, quando o artigo 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem veda, de forma absoluta, a escravidão, cria uma cláusula pétrea internacional, da mesma forma que não se permite a tortura. O desembargador chamou a atenção para a necessidade de respeitarmos essa premissa, de forma absoluta, sem relativização, sem qualquer forma de atenuação. E fez referência aos artigos 5º, inciso III, XII e XLVII, da CF/88, todos tratando do trabalho degradante, forçado, exaustivo. Mencionou ainda as Convenções 29 e 105 da OIT. “Do ponto de vista da fundamentação jurídica, não tem como separar, temos que nos valer necessariamente, indiscutivelmente, de uma concepção contemporânea dos direitos humanos”, afirmou.
A definição do trabalho escravo contemporâneo também foi objeto de sua análise. “Não há como falar disso sem nos reportarmos à nossa história. São 350 anos em que ocupamos o maior espaço escravagista do mundo ocidental. São 10 milhões de escravos que vieram para o Brasil”, comentou, referindo-se agora a Laurentino Gomes. De acordo com o desembargador, o escritor relatou que 40% dos escravos do mundo ficaram nas senzalas brasileiras. “Se conjugarmos a escravidão da época, tida como clássica tradicional, com a escravidão contemporânea, a conclusão a que vamos chegar é que somos viciados em escravidão”, lamentou, ponderando que isso se dá de forma sub-reptícia, sutil, alterando a legislação, criando condições novas que favorecem essa prática.
O magistrado também tratou da definição do trabalho escravo, lembrando que o artigo 149 do Código Penal dispõe sobre as jornadas forçadas, exaustivas, condições degradantes, restrição à locomoção. E, no seu modo de entender, o estigma da escravidão, hoje em dia, já não afeta apenas os afrodescendentes. O que fala mais alto é a pobreza. “É o desemprego, a falta de opção, a venda dos sonhos”, avaliou. Ademais, apontou como crucial a questão do aviltamento à dignidade e o desrespeito à vida.
Lembrando que o escravo tradicional era considerado “patrimônio” do seu senhor, o debatedor observou que o escravo contemporâneo não é patrimônio de ninguém. “Ele paga para ser escravizado, paga pelo alojamento, paga pela comida, pelo transporte”, ironizou.
“Mudam-se o tempo e a realidade, mas não muda a essência da escravidão”, concluiu, considerando crítica a situação do trabalhador diante da reforma trabalhista, aprovada a toque de caixa, ao contrário da própria CLT, cuja construção levou 13 anos.
Sobre os impactos e soluções, o desembargador avaliou que existem apenas impactos. “Quando se flexibilizam as leis, precariza-se, facilita-se o trabalho análogo ao trabalho escravo”, concluiu e finalizou apontando uma certa “nostalgia escravocrata” na intenção desumana dessa açodada Reforma Trabalhista.
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